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Otaviano Helene |
Recentemente, o governo do estado
de São Paulo divulgou uma proposta de criação de cotas sociais para acesso ao
ensino superior público paulista (que inclui as três universidades estaduais,
as Fatecs e duas escolas isoladas de medicina). O objetivo seria preencher pelo
menos 50% das vagas com estudantes de escola pública, 35% delas com estudantes
dos três grupos étnicos.
Apesar de essa descrição
corresponder à forma que a proposta tem sido divulgada pelo governo estadual,
uma leitura atenta mostra que não é bem assim. De fato, o cerne da proposta é a
criação de um curso de dois anos de duração, a ser feito após o ensino médio
(curso pós-médio), cujas disciplinas previstas não permitem nem que ele possa
ser caracterizado como uma espécie de recuperação de deficiências vindas do
ensino médio nem de preparação para cursos superiores.
Essa afirmação tem como base a
ausência de disciplinas típicas do ensino médio, como História, Geografia e
Biologia, e a existência de disciplinas de empreendedorismo, matemática
financeira, liderança e trabalho em equipe, entre outras. Não se pretende
discutir aqui a validade (totalmente duvidosa) de tais cursos, mas, certamente,
eles nem correspondem à recuperação de deficiências escolares trazidas do
ensino médio nem preparam para o ensino superior (o conteúdo integral da
proposta pode ser encontrado, com alguma paciência, na internet, procurando por
seu acrônimo, PIMESP).
As cotas, que de fato aparecem na
proposta, entram não para sanar ou minorar os problemas da segregação social,
econômica e étnica existente na sociedade brasileira, mas, sim, para legitimar
a criação do curso pós-médio pretendido. Ora, a inexistência de um curso
pós-médio, ainda mais a distância, como parece ser a proposta (uma vez que será
implantando com a contribuição da Univesp, um programa do governo estadual que
promove, incentiva e fomenta o ensino a distância), nunca fez parte dos
problemas da educação brasileira.
As boas universidades, como é o
caso da Unesp, Unicamp e USP, nunca sentiram falta de um curso daquele tipo,
cujos estudantes deveriam fazer antes de nelas ingressarem. O setor produtivo,
que tanto reclama, com razão, da falta de quadros bem preparados, nunca sugeriu
que esse problema pudesse ser resolvido por um curso pós-médio, ainda mais a
distância. Os movimentos que lutam por cotas étnicas e sociais também nunca
incluíram em suas pautas a reivindicação de um curso naquela modalidade e
forma. Movimentos que congregam educadores bem como suas associações
profissionais e científicas também nunca fizeram referência à falta de um curso
desse tipo.
Portanto, cabem as perguntas: a
proposta feita pelo governo estadual responde a que demanda? Ela é solução para
que problema? Ela é, de fato, a tentativa de criar mais um problema.
Cotas, sim. Curso pós-médio e a
distância, não
Um curso pós-médio não é uma
forma adequada para o preenchimento de cotas nas universidades pelas seguintes
razões: primeiro, e obviamente, os possíveis beneficiados por um sistema de
cotas têm um desempenho pior nos processos seletivos do que os não cotistas
(caso isso não ocorresse, as cotas seriam desnecessárias). Entretanto, essa
diferença de desempenho não é devida a nenhuma característica própria do
estudante, mas, sim, um reflexo de dificuldades econômicas, do fato de que
frequentaram escolas piores do que seus colegas não cotistas, ou porque
trabalharam durante os estudos ou alguma outra razão que possa prejudicar sua
formação escolar.
A criação de um curso pós-médio,
dessa forma, será mais um problema no nosso já combalidíssimo sistema
educacional. Oferecer a esses estudantes cotistas um bom ambiente de estudo,
eventuais disciplinas de recuperação nas próprias unidades de ensino ou bolsas
de estudo nos casos em que as dificuldades sejam de caráter econômico são soluções
suficientes para o problema. Dirigi-los a um curso pós-médio a distância, não:
todos perderão com isso, inclusive os cotistas.
Qual o efeito das cotas nas boas
instituições de ensino e pesquisa?
Para se saber quais são as
melhores formas de criar cotas e tratar os cotistas, é necessária alguma
análise do perfil dos ingressantes não cotistas e cotistas. Para isso, vamos
ver alguns dados e algumas ideias que podem ajudar a entender o problema e
encaminhar as soluções.
Nos diferentes cursos superiores,
o desempenho que os estudantes apresentaram nos processos seletivos é bastante
variado. Em um curso muito competitivo, a variação entre as maiores e as
menores notas é da ordem de 30%; nos cursos menos procurados, essa variação
supera um fator dois.
Apesar dessa dispersão do
desempenho dos estudantes nos processos seletivos – a qual pode refletir
diferentes níveis de preparo, mas também interesses por outras atividades, as
diferentes condições econômicas e sociais em que vivem, a dedicação de parte do
tempo a outras atividades importantes, entre outras causas –, as universidades
sabem trabalhar com ela. Além disso, parte dessa heterogeneidade é própria do
ser humano e, em muitos casos, é a base que forma a parte saudável da
variabilidade social, cultural, profissional e pessoal com a qual aprendemos a
viver e da qual gostamos e precisamos.
Mas o que ocorreria com a
dispersão das notas nos processos seletivos se parte das vagas viesse a ser
ocupada por cotistas? Para responder com precisão, seria necessário ter a
classificação dos candidatos nos diferentes processos seletivos, cursos e
regiões do país e examinar com detalhes as características dos novos
ingressantes. Entretanto, um exame da variação das notas em provas amplas, como
o Enem, por exemplo, pode dar uma indicação disso. Por exemplo, as três
universidades públicas paulistas recebem cerca de sete mil estudantes por ano
vindos de escolas públicas de ensino médio. Os sete mil estudantes de escolas
públicas paulistas com melhores notas no Enem, em uma escala de zero a cem, são
aqueles que têm notas maiores do que 62,3.
Se essas três universidades
adotassem uma política de cotas e admitissem 50% dos ingressantes vindos de
escolas públicas (correspondentes a onze mil pessoas), a nota de corte seria
reduzida para 60,8. Essa pequena diferença mostra que incluir os cotistas
alargará ligeiramente a faixa de desempenho nos processos seletivos dos
ingressantes, mas em uma proporção muito menor do que aquela que já se observa
nos diferentes cursos. Além disso, como já dito, essa diferença de nota dos
possíveis cotistas pode estar muito mais relacionada a fatores sociais,
inclusive quanto à escola que frequentaram e, portanto, pouco ou nada alterará
o desempenho futuro dos estudantes e profissionais quando comparado com o de
seus colegas não cotistas. Caso a instituição de ensino tenha condições
adequadas para responder às necessidades de seus estudantes, só poderá haver
mudanças para melhor.
Conclusão
Receber nas instituições públicas
de ensino superior estudantes com um desempenho nos processos seletivos que
levem a um pequeno ou mesmo pequeníssimo aumento na já existente
heterogeneidade encontrada exigirá nenhum ou muito pouco esforço adicional das unidades
de ensino, como o eventual oferecimento de algumas poucas disciplinas de
recuperação. Disciplinas que poderão beneficiar também os demais estudantes que
se sentirem insuficientemente preparados e que estejam realmente interessados
no curso em que ingressaram. A instituição de bolsas de estudo, com valores
realistas, que minimizem dificuldades econômicas que atrapalham o desempenho
estudantil, talvez seja uma das melhores soluções tanto para os cotistas como,
também, para muitos estudantes que hoje ingressam nos cursos superiores
públicos, mas têm grandes dificuldades de acompanhá-los adequadamente por causa
de dificuldades financeiras. Dificuldades estas que os obrigam a gastarem boa
parte do tempo e esforço para trabalhar e/ou impõem restrições materiais
graves, as quais acabam por prejudicar os estudos.
Um curso pós-médio, a distância,
nada tem a ver com a questão de cotas, como o governo estadual quer nos fazer
acreditar. E usá-lo como um processo de seleção de cotistas é totalmente
inadequado.
Além disso, o processo proposto
pelo governo pode implicar em uma frequência de até dois anos em um curso
possivelmente a distância, duas péssimas ideias: não são necessários dois anos
de recuperação, como mostra a análise de desempenho nos vestibulares feita mais
acima; esperar dois anos é muito tempo para um jovem que pretende ingressar em
um curso superior; um curso a distância é inaceitável por razões várias já
levantadas, inclusive em artigo publicado neste Correio da Cidadania (Ensino a
distância não é uma solução, e sim outro problema a ser superado), ainda mais
com as disciplinas que tem (e as que não tem).
A proposta do governo estadual
não é uma proposta de cotas: é uma proposta de criação de um curso pós-médio,
pelo menos parcialmente a distância, com um currículo inadequado, dirigido a
pessoas que precisam e querem educação séria e de qualidade, portanto, não a
distância. A inclusão de cotas sociais no bojo dessa proposta é apenas uma
tentativa para legitimá-la.
Portanto, a proposta do governo é
inaceitável e deve ser repudiada. Devemos denunciar, também, o truque de
disfarçá-la de proposta social. Não precisamos nem queremos isso. Há formas
muito mais simples, objetivas e sérias se o que se quer é criar cotas nas
instituições de ensino superior. Cotas, sim e já, mas não dessa forma.
* Otaviano Helene: professor do
Instituto de Física da USP, foi presidente da Associação dos Docentes da USP
(Adusp) e do Inep/MEC.
* Fonte: Correio da Cidadania
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