Editorial: Um desafio
aos “imparciais”
Desde a renúncia de
Fernando Collor para escapar do impeachment em 1992, quase todo repórter
brasileiro se apresenta como um Bob Woodward ou um Carl Bernstein, a célebre
dupla de jornalistas do Washington Post que desvendou o escândalo da invasão do
comitê nacional do Partido Democrata no prédio Watergate. Em geral falta
cultura, talento e coragem aos pares nacionais para tanto, assim como
escasseiam inúmeros dos princípios basilares da atividade aos empreendimentos
jornalísticos que os empregam. Apego à verdade factual, por exemplo. Neste
momento, destacaríamos dois: a completa ausência de honestidade intelectual e
de rigor na apuração.
Há quem entenda a
emblemática apuração do caso Watergate como um conto de fadas. Num belo dia de
verão, Woodward e Bernstein encontraram em um estacionamento uma fada madrinha
chamada Garganta Profunda, ganharam um presente mágico, publicaram um texto e
derrubaram o presidente republicano Richard Nixon. A vida real foi bem
diferente. A dupla de repórteres publicou centenas de reportagens, checadas
exaustivamente a partir de indicações nem sempre claras da fonte. Seu grande mérito
foi seguir à risca uma recomendação: sigam o dinheiro.
Evocamos o caso
Watergate por conta do reaparecimento na mídia do chamado mensalão. No sábado 2, a revista Época publicou o
que dizia ser o relatório final da PF sobre o escândalo que abalou o governo
Lula. A reportagem da semanal da Editora Globo estimulou uma série de
editoriais e inspirou colunistas a afirmarem que o relatório seria a prova da
existência do mensalão, o pagamento mensal a parlamentares em troca de apoio ao
governo.
Na quarta 6,
CartaCapital teve acesso ao trabalho do delegado Luís Flávio Zampronha, base da
“denúncia” de Época. Nas próximas páginas, Leandro Fortes conta o que realmente
escreveu o delegado. A começar pelo simples de fato de que não se trata de um
relatório final, como afirma a semanal da Globo, mas de uma investigação complementar
feita a pedido do Ministério Público cujo objetivo era mapear as fontes de
financiamento do valerioduto. Nas mais de 300 páginas, não há nenhuma linha que
permita à Época ou a qualquer outro meio de comunicação afirmar que o mensalão
tenha sido provado. Ao contrário. À página 5, e em diversos outros trechos,
Zampronha foi categórico: “Esta sobreposição diz respeito apenas a questões
pontuais sobre a metodologia de captação e distribuição dos valores manipulados
por Marcos Valério e seus sócios, não podendo a presente investigação, de forma
alguma, apresentar inferências quanto ao esquema de compra de apoio político de
parlamentares da base de sustentação do governo federal”.
Não se trata de uma
mera questão semântica nem, da nossa parte, um esforço para minimizar qualquer
crime cometido pelo PT e por integrantes do governo Lula. CartaCapital, aliás,
nunca defendeu a tese de que o caixa 2, associado a um intenso lobby e também
alimentado com dinheiro público, seja menos grave que a compra de apoio parlamentar.
A história do mensalão serve, na verdade, ao outro lado, àquele que nos acusa
de parcialidade. Primeiro, por ter o condão de circunscrever o escândalo apenas
ao PT e, desta forma, usá-lo como instrumento da disputa de poder. Depois, por
esconder a participação do banqueiro Daniel Dantas, cujos tentáculos na mídia
CartaCapital denuncia há anos, e a do PSDB, legenda preferida dos patrões e
seus prepostos nas redações. Em nome desta aliança, distorce-se e mente-se
quando necessário. E às favas o jornalismo.
Em 2005, quando a
mídia desviou-se do núcleo do escândalo, desprezando a lição de Watergate, em
busca de denúncias capazes de levar ao impeachment de Lula (quem não se lembra
da lendária “reportagem” sobre os dólares de Cuba?), CartaCapital manteve-se
firme no propósito de seguir o dinheiro. Temos orgulho de nosso trabalho. Fomos
os primeiros a esmiuçar a participação de Dantas no financiamento do
valerioduto. Demonstramos com detalhes incontestáveis a origem e as
ramificações das falcatruas de Marcos Valério, sem poupar ninguém.
Em agosto daquele
ano, quando veio à tona a viagem de Marcos Valério a Portugal, a mídia em coro
afirmou que o publicitário viajara a Lisboa com o objetivo de vender o estatal
Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) ao banco Espírito Santo. Nossa
reportagem do mesmo período comprovava outro enredo: Valério tinha a missão de
negociar a Telemig Celular, controlada pelo Opportunity e os fundos de pensão,
à Portugal Telecom. E explicava como o então ministro José Dirceu. Associado a
outros petistas, participara da tramóia a favor do banqueiro orelhudo. A venda
da Telemig, da forma imaginada, levaria os fundos a perdas irreversíveis,
renderia bilhões a Dantas e alguns milhões aos cofres petistas. Bastaria ao
governo retirar Sergio Rosa do comando da Previ, a fundação dos funcionários do
Banco do Brasil que resistiam bravamente às manobras dantescas. Em depoimentos
que constam do inquérito do mensalão no Supremo Tribunal Federal, as fontes
portuguesas que se encontraram com Valério em Lisboa confirmaram a história
contada por CartaCapital.
Sempre enxergamos no
lamentável escândalo do valerioduto uma oportunidade de o Brasil compreender a
fundo o esquema de captura de partidos e governos por meio do financiamento
ilegal de campanhas. O mensalão, em grande medida, se conecta a outros tantos
casos recentes da história nada republicana do poder. O ministro Joaquim
Barbosa, do Supremo, tem a oportunidade de pôr a limpo estes esquemas e de
revelar por completo a influência de Dantas nos governos FHC e Lula, na mídia e
no Judiciário. Acima dos interesses partidários, a bem do País.
O relatório de
Zampronha é mais uma prova de que estávamos certos. Por isso, decidimos lançar
um desafio. A partir da noite da quinta-feira 7 publicaremos em nosso site a
íntegra do relatório da PF. Os interessados poderão assim conferir, livres de
qualquer mediação, quem é fiel à verdade factual e quem não é. Quem pratica
jornalismo e quem defende interesses inconfessáveis. Quem é independente.
Leia a íntegra do
relatório: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4, Parte 5, Parte 6, Parte 7 e
Parte 8
A verdade sobre o
relatório da PF
Por Leandro Fortes
O escândalo do
mensalão voltou à cena. Em páginas recheadas de gráficos, infográficos, tabelas
e quadros de todos os tipos e tamanhos, a revista Época anunciou, na edição que
chegou às bancas no sábado 2, ter encontrado a pedra fundamental da mais grave
crise política do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2005 e
2006. Com base em um relatório sigiloso da Polícia Federal, encaminhado ao
Supremo Tribunal Federal, a semanal da
Editora Globo concluiu sem mais delongas: a PF havia provado a existência do
mensalão e o uso de dinheiro público no esquema administrado pelo publicitário
Marcos Valério de Souza. Outro aspecto da reportagem chamada atenção: o esforço
comovente em esconder o papel do banqueiro Daniel Dantas no financiamento do
valerioduto. Alguns trechos pareciam escritos para beatificar o dono do
Opportunity, apresentado como um empresário achacado pela sanha petista por
dinheiro.
As provas do
descalabro estariam nas 332 páginas do inquérito 2.474, tocado pelo delegado
Luiz Flávio Zampronha, da Divisão de Combate a Crimes Financeiros da PF e
encaminhado ao ministro Joaquim Barbosa, relator no STF do processo do “mensalão”. Inspirados no relato de
Época, editorialistas, colunistas e
demais istas não tiveram dúvidas: o mensalão estava provado. Estranhamente, a
mesma turma praticamente silenciou a respeito dos trechos que tratavam de
Dantas.
Infelizmente, os
leitores de Época não foram informados corretamente a respeito do conteúdo do
relatório escrito, com bastante rigor e minúcias, pelo delegado Zampronha. Em
certa medida, sobretudo na informação básica mais propalada, a de que o
“mensalão” havia sido confirmado, esses mesmos leitores foram enganados. Não há
uma única linha no texto que confirme a existência do tal esquema de pagamentos
mensais a parlamentares da base governista em troca de apoio a projetos do
governo no Congresso Nacional.
Ao contrário. Em mais
de uma passagem, o policial faz questão de frisar que o inquérito, longe de ser
o “relatório final do mensalão”, é uma investigação suplementar do chamado
“valerioduto”, solicitada pela Procuradoria Geral da República, para dar
suporte à denúncia inicial, esta sim baseada na tese dos pagamentos mensais.
Trata, portanto, da complexa rede de arrecadação, distribuição e lavagem de
dinheiro sujo montada por Marcos Valério. Zampronha teve, inclusive, o trabalho
de relatar como esse esquema a envolver financiamento ilegal de campanha e
lobbies privados começou em 1999, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, e
terminou em 2005, na administração Lula, após ser denunciado pelo deputado
Roberto Jefferson, do PTB. Ao longo do texto, fica clara a percepção do
delegado de que nunca houve “mensalão” (o pagamento mensal a parlamentares),
mas uma estratégia mafiosa de formação de caixa 2 e que avançaria sobre o
dinheiro público de forma voraz caso não tivesse sido interrompida pela eclosão
do escândalo.
Na quarta-feira 6,
CartaCapital teve acesso ao relatório. Para não tornar seus leitores escravos
da interpretação exclusiva da reportagem que se segue, decidiu publicar na
internet (www.cartacapital.com.br) a íntegra do documento. Assim, os
interessados poderão tirar suas próprias conclusões. Poderão verificar, por
exemplo, que o delegado ateve-se a identificar as fontes de financiamento do
valerioduto. E mais: notar que Dantas é o principal alvo do inquérito.
Ao contrário do que
deu a entender a revista Época, não se trata do “relatório final” sobre o
mensalão. Muito menos foi encomendado pelo ministro Barbosa para esclarecer “o
maior escândalo de corrupção da República”, como adjetiva a semanal. Logo na
abertura do relatório, Zampronha faz questão de explicar – e o fará em diversos
trechos: a investigação serviu para consolidar as informações relativas às
operações financeiras e de empréstimos fajutos do “núcleo Marcos Valério”. Em
seguida, trata, em 36 páginas (mais de 10% de todo o texto), das relações de
Marcos Valério com Dantas e com os petistas. À página 222, anota, por exemplo:
“Pelos elementos de prova reunidos no presente inquérito, contata-se que Marcos
Valério atuava como interlocutor do Grupo Opportunity junto a representantes do
Partido dos Trabalhadores, sendo possível concluir que os contratos (de
publicidade) realmente foram firmados a título de remuneração pela
intermediação de interesse junto a instâncias governamentais”.
O foco sobre Dantas
não fez parte de uma estratégia pessoal do delegado. No fim do ano passado, a
Procuradoria Geral da República determinou à PF a realização de diligências
focadas no relacionamento do valerioduto com as empresas Brasil Telecom,
Telemig Celular e Amazônia Celular. As
três operadoras de telefonia, controladas à época pelo Opportunity, mantinham
vultosos contratos com as agências DNA e SMP&B de Marcos Valério. Zampronha
solicitou todos os documentos referentes a esses pagamentos, tais como
contratos, recibos, notas fiscais e comprovantes de serviços prestados. A
conclusão foi de que a dupla Dantas-Valério foi incapaz de comprovar os
serviços contratados.
As análises
financeiras dos laudos periciais encomendados ao Instituto Nacional de
Criminalística da PF revelaram que, entre 1999 e 2002, no segundo governo FHC,
apenas a Telemig Celular e a Amazônia Celular pagaram às empresas de Marcos
Valério, via 1.169 depósitos em dinheiro, um total de 77,3 milhões de reais.
Entre 2003 e 2005, no governo Lula, esses créditos, consumados por 585
depósitos das empresas de Dantas, chegaram a 87,4 milhões de reais. Ou seja,
entre 1999 e 2005, o banqueiro irrigou o esquema de corrupção montado por
Marcos Valério com nada menos que 164 milhões de reais. O cálculo pode estar
muito abaixo do que realmente pode ter sido transferido, pois se baseia no que
os federais conseguiram rastrear.
Segundo o relatório,
existem triangulações financeiras típicas de pagamento de propina e lavagem de
dinheiro. Em uma delas, realizada em 30 de julho de 2004, a Telemig Celular
pagou 870 mil reais à SMP&B, depósito que se somou a outro, de 2,5 milhões
de reais, feito pela Brasil Telecom. O total de 3,4 milhões de reais serviu de
suporte para transferências feitas em favor da empresa Athenas Trading, no valor
de 1,9 milhão de reais, e para a By Brasil Trading, de 976,8 mil reais, ambas
utilizadas pelo esquema de Marcos Valério para mandar dinheiro ao exterior por
meio de operações de câmbio irregulares, de modo a inviabilizar a identificação
dos verdadeiros beneficiários dos recursos. Em consequência, Zampronha repassou
ao Ministério Público Federal a função de investigar se houve efetiva prestação
de serviços por parte das agências de Marcos Valério às empresas controladas
pelo Opportunity.
A principal pista da
participação de Dantas na irrigação do valerioduto surgiu, porém, a partir de
uma auditoria interna da Brasil Telecom, realizada em 2006. Ali demonstrou-se
que, às vésperas da instalação da CPMI dos Correios, em 2005, na esteira do
escândalo do “mensalão” e no momento em que a permanência do Opportunity no
comando da telefônica estava sob ameaça, a DNA e a SMP&B celebraram com a
BrT contratos de 50 milhões de reais. Dessa forma, as duas empresas de Marcos
Valério puderam, sozinhas, abocanhar 40% da verba publicitária da Brasil
Telecom. Isso sem que a área de marketing da operadora tivesse sido consultada.
Ao delegado, Dantas
afirmou que, a partir de 2000, ainda no governo FHC, passou a “sofrer pressões”
da italiana Telecom Italia, sócia da BrT. Em 2003, já no governo Lula, o
banqueiro afirma ter sido procurado pelo então ministro-chefe da Casa Civil, o
ex-deputado José Dirceu, com quem teria se reunido em Brasília.
Na conversa com
Dirceu, afirma Dantas, o ministro teria se mostrado interessado em resolver os
problemas societários da BrT e encerrar o litígio do Opportunity com os fundos
de pensão de empresas estatais. O Palácio do Planalto teria escalado o então
presidente do Banco do Brasil, Cassio Casseb, para cuidar do assunto. Casseb
viria a ser um dos alvos da arapongagem da Kroll a pedido do Opportunity. O
caso, que envolveu a espionagem de integrantes do governo FHC e da
administração Lula, baseou a Operação Chacal da PF em 2004.
Dantas afirmou ter se
recusado a “negociar” com o PT. Após a recusam acrescenta, as pressões
aumentaram e ele teria começado a ser perseguido pelo governo. Mas o banqueiro
não foi capaz de provar nenhuma das acusações, embora seja claro que petistas
se aproveitaram da guerra comercial na telefonia para extrair dinheiro do
orelhudo. Só não sabiam com quem se metiam. Ou sabiam?
O fundador do
Opportunity também repetiu a versão de que um de seus sócios, Carlos Rodemburg,
havia sido procurado pelo então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, acompanhado
de Marcos Valério, para ser informado de um déficit de 50 milhões de reais nas
contas do partido. Teria sido uma forma velada de pedido de propina, segundo
Dantas, nunca consolidado. O próprio banqueiro, contudo, admitiu que Delúbio
não insinuou dar nada em troca da eventual contribuição solicitada. Negou,
também, que tenha mantido qualquer relação pessoal ou comercial com Marcos
Valério, o que, à luz das provas recolhidas por Zampronha, soam como deboche.
“O depoimento de Daniel Dantas está repleto de respostas evasivas e esquecimentos
de datas e detalhes dos fatos”, informou no despacho ao ministro Barbosa.
Chamou a atenção do
delegado o fato de os contratos da BrT com as agências de Marcos Valério terem
somado os exatos 50 milhões de reais que teriam sido citados por Delúbio no
encontro com Rodemburg. Para Zampronha, a soma dos contratos, assim como outras
diligências realizadas pelo novo inquérito, “indicam claramente” que, por algum
motivo, o Grupo Opportunity decidiu efetuar os repasses supostamente
solicitados por Delúbio, com a intermediação das agências de Marcos Valério,
como forma de dissimular os pagamentos.
Os contratos da DNA e
da SMP&B com a Brasil Telecom, segundo Zampronha, obedecem a uma
sofisticada técnica de lavagem de dinheiro, usada em todo o esquema de Marcos
Valério, conhecida como commingling (mescla, em inglês). Consiste em misturar
operações ilícitas com atividades comerciais legais, de modo a permitir que
outras empresas privadas possam se valer dos mesmos mecanismos de simulação e
superfaturamento de contratos de publicidade para encobrir dinheiro sujo. No
caso da BrT, cada um dos contratos, no valor de 25 milhões de reais, exigia
contratação de terceiros para serem executados. Além disso, havia a previsão de
pagamento fixo de 187,5 mil reais mensais às duas agências do Valerioduto,
referente à prestação de serviços de “mídia e produção”.
Surpreendentemente, e
contra todas as evidências, Dantas disse nunca ter participado da administração
da BrT. Por essa razão, não teria condições de prestar qualquer informação
sobre os contratos firmados pela então presidente da empresa, Carla Cicco,
indicada por ele, com as agências de Marcos Valério. De volta a Itália desde
2005, Carla Cicco informou à PF não ter tido qualquer participação ou
influência na contratação das agências, apesar de admitir ter assinado os
contratos. Disse ter se encontrado com Marcos Valério uma única vez, numa
reunião de trabalho com representantes da DNA.
O protagonismo de
Dantas no valerioduto e o desmembramento da rede de negócios montada por Marcos
Valério, desde 1999, nos governos do PSDB e do PT são elementos que, no
relatório da PF, desmontam, por si só, a tese do pagamento de propinas mensais
a parlamentares. Ou seja, a tese do “mensalão”, na qual se baseou a denúncia da
PGR encaminhada ao Supremo, não encontra respaldo na investigação de Zampronha,
a ponto de sequer ser considerada como ponto de análise.
O foco do delegado é
outro crime, gravíssimo e comum ao sistema político brasileiro, de
financiamento partidário baseado em arrecadação ilícita, montagem de caixa 2 e,
passadas as eleições, divisão ilegal de restos de campanha a aliados e
correligionários. Por essa razão, ele encomendou os novos laudos detalhados ao
INC.
Uma das primeiras
conclusões dos laudos de exame contábil foi que Marcos Valério usava a DNA
Propaganda para desviar recursos do Fundo de Incentivo Visanet, empresa com
participação acionária do Banco do Brasil, e distribui-los aos participantes do
esquema do PT e de partidos aliados. O fundo foi criado em 2001 com o objetivo
de financiar ações de marketing para incentivar o uso de cartões da bandeira
Visa. O Visanet foi, inicialmente, constituído com recursos da Companhia
Brasileira de Meios e Pagamentos (CBMP), nome oficial da empresa privada
Visanet, e distribuído em cotas proporcionais de um total de 492 milhões de
reais a 26 acionistas. Além do BB participam o Bradesco, Itaú, HSBC, Santander,
Rural, e até mesmo o Panamericano, vendido recentemente por Silvio Santos ao
banqueiro André Esteves. “Para operar tais desvios, Marcos Valério aproveita-se
da confusão existente entre a verba oriunda do Fundo de Incentivo Visanet e
aquela relacionada ao orçamento de publicidade próprio do Banco do Brasil”,
anotou o policial.
O BB repassava mais
de 30% do volume distribuído pelo fundo, cerca de 147,6 milhões de reais, valor
correspondente à participação da instituição no capital da Visanet. Desse
total, apenas a DNA Propaganda recebeu 60,5% do dinheiro, cerca de 90 milhões
de reais, entre 2001 e 2005, divididos por dois anos no governo FHC, e por dois
anos e meio, no governo Lula. Daí a constatação de que, de fato, por meio da
Visanet, o valerioduto foi irrigado com dinheiro público. O que nunca se falou,
contudo, é que essa sangria não se deu somente durante o governo petista,
embora tenha sido nele o período de maior fartura da atividade criminosa.
Quando eram os tucanos a coordenar o fundo, Marcos Valério meteu a mão em ao
menos 17,2 milhões de reais.
De acordo com o
relatório da PF, Marcos Valério tinha consciência de que agências de
publicidade e propaganda representavam um mecanismo eficaz para desviar
dinheiro público, por conta do caráter subjetivo dos serviços demandados. Mas
havia um detalhe mais importante, como percebeu Zampronha. Com as agências,
Valério passou a lidar com a compra de espaços publicitários em diversos
veículos de comunicação. “Esta relação econômica estreitava o vínculo do
empresário com tais veículos e poderia facilitar o direcionamento de coberturas
jornalísticas”.
As Organizações
Globo, proprietária da revista Época, sonegou a seus leitores, por exemplo, ter
sido a maior beneficiária de uma das principais empresas do valerioduto. À
página 68 do relatório, e em outras tantas, a TV Globo é citada explicitamente.
Escreve o delegado: “A nota emitida pela empresa de comunicação destaca-se por
sua natureza fiscal de adiantamento, “publicidade futura”, isto é, a nota por
si só não traz qualquer prestação de serviço, como também não há elementos que
vincule os valores adiantados ao fundo de incentivo Visanet”. Zampronha se
referia a contratos firmados em 2003 no valor de 720 mil reais e 2,88 milhões
de reais. Entre 2004 e 2005,
a TV Globo receberia outros pagamentos da DNA, no valor
total de 1,2 milhão de reais, lançados na planilha de controle do Fundo
Visanet.
Mesmo tratado com
simpatia na reportagem da Época, o Opportunity não perdoou. No item 17 de uma
longa nota oficial em resposta, o banco atira: “Na Telemig, segundo informações
prestadas à CPI do Mensalão, a maioria dos recursos eram repassados às
Organizações Globo. Por isso, a apuração desses fatos fica fácil de ser feita
pela Época.”
Segundo Zampronha, o
objetivo do valerioduto era criar empresas de fachada para auxiliar na
movimentação de dinheiro sujo e manter os interessados longe dos órgãos
oficiais de fiscalização e controle. O leque de agremiações políticas para as
quais Marcos Valério “prestava serviços” era tão grande que não restou dúvida
ao delegado: “Estamos diante de um profissional sem qualquer viés partidário”.
Isso não minimiza o fato de o PT, além de qualquer outra legenda, ter se
lambuzado no esquema. Não fosse a denúncia de Jefferson, o valerioduto teria se
inscrutado de forma absoluta no Estado brasileiro e se transformado em uma
torneira permanemente aberta por onde jorraria dinheiro público para os cofres
petistas.
CartaCapital não
espera, como de costume, que esta reportagem tenha repercussões na mídia
nativa. À exceção da desbotada tese do mensalão, que serve à disputa
político-partidária na qual os meios de comunicação atuam como protagonistas,
não há nenhum interesse em elucidar os fatos. O que, se assim for, provará que
a sociedade afluente navega tranquilamente sobre o velho mar de lama.
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