Enquanto o protesto ameaça ceifar
vidas, a repulsa mundial cresce diante da sina dos prisioneiros e Obama
enfrenta intensa pressão para agir
Quando os médicos militares na
baía de Guantánamo, em Cuba, alimentam à força o prisioneiro Fayiz al-Kandari
com um tubo enfiado em seu estômago, há três etapas de dor.
Primeiro, a sensação do tubo
passando próximo aos seios faciais enquanto é empurrado pelo nariz e pela
garganta, o que faz seus olhos lacrimejarem. Depois há uma intensa sensação de
queimação e sufocamento enquanto o objeto passa pela garganta. Finalmente,
quando o tubo entra no estômago, há uma forte ânsia de vômito.
A experiência, descrita por
al-Kandari para seu advogado, Carlos Warner, tem uma última implacável
humilhação. Quando o tubo despeja o alimento em seu estômago, provoca o momento
mais doloroso de todos: o retorno da sensação de fome. "Ele diz que isso
talvez seja o pior", conta Warner.
Al-Kandari é um dos pelo menos
100 homens em greve de fome no polêmico campo de prisioneiros terroristas dos
Estados Unidos em Cuba. Desse número, cujo protesto de dois meses provocou
manchetes em todo o mundo, 21 estão sendo obrigados a alimentar-se à força para
continuarem vivos.
Como outros 85 dos 166 detidos no
campo, al-Kandari foi liberado para soltura, mas continua sendo detido sem
acusação. O horrível sofrimento de muitos desses homens -- presos sem
julgamento há mais de uma década, em muitos casos, e liberados mas não
libertados -- gerou uma onda de repulsa em todo o mundo, enquanto a greve de
fome ganhava força.
A Cruz Vermelha Internacional
protestou contra o tratamento e as condições dos presos. Um grupo de
autoridades de direitos humanos da ONU exigiu o fim da alimentação forçada,
alegando ser uma forma de tortura. "Os grevistas deveriam ser protegidos
de todo tipo de coerção, ainda mais quando isso é feito por meio da força e, em
alguns casos, de violência física", disse o grupo em uma declaração na
última semana.
Raramente na década que se passou
desde que Guantánamo se tornou um campo de prisioneiros fora de jurisdição para
supostos militantes islâmicos capturados na "guerra ao terror", a
base americana apareceu com tanto destaque nas manchetes. Os manifestantes
famintos levaram a existência do campo para todo o noticiário nos EUA, forçando
Barack Obama a voltar a prometer que vai fechá-lo. "A ideia de que
manteríamos para sempre um grupo de indivíduos que não foram julgados é contrária
a quem nós somos. Isso é contrário aos nossos interesses, e precisa
parar", disse o presidente dos EUA em uma entrevista coletiva.
Muita gente concordaria com ele.
Mas não é fácil. Apesar da crescente pressão e do desejo de Obama em fechar a
base, os EUA estão descobrindo que a existência de Guantánamo e seus
manifestantes miseráveis e famintos não pode ser resolvida tão facilmente.
Já em janeiro de 2004, um
relatório operacional da Cruz Vermelha fez uma observação sobre o impacto
psicológico que o conceito de detenção indefinida tinha sobre os prisioneiros
do campo. Ele revelou que tinha-se "observado uma preocupante deterioração
na saúde psicológica de grande número deles".
Isso foi há nove anos. Não admira
que os que continuam lá -- ainda sem perspectivas de libertação ou julgamento
-- tenham entrado em greve de fome para mudar seu destino. A Cruz Vermelha
observa de perto a situação atual. Segundo uma fonte, "as greves de fome
são um reflexo do desespero de indivíduos que não têm perspectiva clara de seu
futuro. A incerteza é o que está levando a isto".
Surpreendentemente, porém, a
greve não começou especificamente por causa dessas questões. Nem envolveu de
imediato um grande número de detidos. As declarações de prisioneiros
transmitidas por seus advogados e liberadas para divulgação pelas autoridades militares
da base, mostram que em 6 de fevereiro houve uma intensa varredura nas
acomodações dos prisioneiros no campo 6 da base.
Os internos tiveram de sair, e
artigos pessoais como cartas, escovas de dente e livros foram vasculhados e às
vezes confiscados. Alguns prisioneiros afirmaram que seus exemplares do Corão
foram manipulados de modo errado pelos guardas -- uma alegação insistentemente
negada pelos militares.
Seja qual for a verdade, foi
demais para alguns. O prisioneiro afegão Obaidullah disse em uma declaração
obtida pela Anistia Internacional: "Eu não tinha participado de greves de
fome ou organizado protestos antes, mas os últimos atos nos campos me
desumanizaram, por isso decidi entrar em ação. Onze anos de minha vida foram
tirados de mim e agora, com os últimos atos das autoridades, também tiraram
minha dignidade e desrespeitaram minha religião."
A greve de fome começou a se
espalhar. Durante esse tempo, advogados relataram que um número crescente de
detidos estava protestando: alguns recusavam totalmente alimentos, outros
deixavam de comer em grau menor. As autoridades militares minimizaram o
problema.
Em um depoimento ao Congresso em
março, o general John Kelly só admitiu que 24 prisioneiros de Guantánamo
estavam em "greve de fome leve" e comendo "um pouco, mas não
muito". Alguns deles, confessou o general, estavam sendo alimentados à
força, mas "se apresentam diariamente, em calma, de maneira totalmente
cooperativa, para serem alimentados por um tubo". Ele chegou a acrescentar
que suspeitava que alguns deles levassem lanches escondidos quando voltavam
para suas celas.
Conforme cresciam as manchetes, e
também o número de grevistas, tornou-se impossível levar a situação
levianamente. Então, em 13 de abril, começou a repressão. Para quebrar a greve,
os guardas aparentemente tentaram forçar uma política de colocar os grevistas
de fome em acomodações individuais, longe das partes comunitárias do campo.
Alguns resistiram e a violência irrompeu, com os militares disparando a chamada
munição "não letal" diversas vezes e ferindo vários prisioneiros.
Younous Chekkouri, falando por
telefone com um advogado da instituição de direitos humanos Reprieve, descreveu
que os guardas usaram gás lacrimogêneo e "espingardas com pequenas balas
[de borracha]" para dominar um protesto pacífico depois que os guardas
descobriram câmeras dentro das celas. "Os guardas estavam assustados,
estavam prontos para usar armas, usar a força, foi muito assustador",
disse ele.
Al-Kandari também descreveu a
cena, incluindo a visão de "muitas" pessoas atingidas pelas
"balas de borracha" que eram usadas pelos guardas. "As mãos de
todos foram atadas às suas costas e os homens foram deixados no chão durante
seis horas na posição de rosto para baixo. Suas roupas estavam empapadas de
spray de pimenta", disse em um telefonema para seu advogado.
Agora a crise havia se agravado
tanto que, em meio a advertências de que alguém poderia morrer, uma equipe
médica militar de 40 pessoas foi levada à base no início da semana passada,
para realizar a alimentação forçada e manter os prisioneiros vivos.
Omar Farah, um advogado do Centro
para Direitos Constitucionais, baseado em Nova York, visitou pessoalmente
vários detidos na semana passada na prisão, incluindo Fahd Ghazy. Ele ficou
chocado com o que viu. "Fahd parecia ter perdido cerca de um quarto de seu
peso corporal", relatou, descrevendo outros detidos cujas mãos tremiam de
fraqueza e eram incapazes de realizar tarefas simples como levantar uma garrafa
de água. "Fiquei chocado com a ruína física que vi."
Um homem mais que qualificado
para falar sobre o que deveria acontecer em Guantánamo é o coronel Morris
Davis, ex-promotor-chefe nas comissões militares do campo. Ele serviu lá
durante dois anos, vendo as acusações feitas contra o militante australiano
David Hicks e Salim Hamdan, que foi motorista de Osama bin Laden. Ele se
orgulha do tempo que passou na base -- embora tenha sido demitido em 2007
depois que comandantes quiseram usar as evidências obtidas por meio da técnica
de tortura por afogamento.
Mas Davis hoje é um crítico
declarado da base militar. "Por mais ilógico que pareça o suicídio, ficar
lá pelo resto de suas vidas provavelmente o faz parecer uma opção
racional", disse. Davis lançou vários abaixo-assinados para que o governo
Obama feche a base. Mas ele se recusa a ser otimista. "Não posso acreditar
que estamos aqui, em 2013, ainda falando sobre isso."
Tudo o que há são palavras. O
próprio Obama reconheceu na semana passada que a base é um desastre de
publicidade para os Estados Unidos -- há poucas ferramentas de recrutamento
melhores [para os terroristas] que o conhecimento de que tantas pessoas estão
detidas há tanto tempo sem acusação. Mas, mesmo enquanto repetia sua promessa
não cumprida da campanha de 2008 de fechar a base, o democrata deixou claro que
buscaria o apoio do Congresso para isso.
É o estilo do presidente buscar a
parceria com seus adversários republicanos, mas é exatamente o caminho que o
impediu de fechar a base em seu primeiro ano no cargo. Muitos republicanos, que
controlam a Câmara dos Deputados, são implacavelmente contra libertar qualquer
prisioneiro ou mudá-los para instalações seguras em território americano.
É algo que Davis não pode
compreender. "Eles dizem: 'Não podemos cuidar de todas essas pessoas
perigosas e malucas'. Mas eu posso lhe dizer que nosso sistema prisional já
cuida muito bem de milhares de pessoas perigosas e malucas", ressaltou. De
fato, todos os principais casos recentes de terrorismo -- desde os bombardeios
em Boston no mês passado até a tentativa de um carro-bomba em Times Square
vários anos atrás -- entraram no sistema da justiça civil dos EUA.
Obama poderia facilmente tomar
medidas concretas de imediato e sem o apoio dos republicanos. Ativistas de
direitos humanos e grupos de defesa legal lhe pediram para nomear uma
autoridade para cuidar do problema. Eles dizem que o presidente poderia suspender
a proibição de enviar prisioneiros liberados para a libertação no Iêmen -- um
aliado americano cujo governo insiste que os receberia. Esse ato por si só
poderia liberar dezenas de detidos do campo, incluindo al-Kandari. "Os
homens estão além da conversa. Precisamos retomar as transferências",
disse Farah.
Mas para fazê-lo Obama terá de
assumir o risco de agir sozinho, expondo-se a acusações de não ser firme com o
terrorismo depois do atentado em Boston e com a aproximação das eleições
intermediárias de 2014. Para muitos observadores, isso seria esperar que Obama
dê um passo grande demais. Mas mesmo que ele fechasse o campo, libertasse os
absolvidos e levasse os outros detidos para uma prisão de segurança máxima nos
EUA, e depois?
Os que permanecerem sob custódia
dos EUA ainda ficariam detidos indefinidamente sem julgamento, uma clara
violação dos direitos humanos. Afinal, esses homens que protestam
desesperadamente não estão recusando alimentação simplesmente para trocar o ar
tropical de Cuba por uma cela gelada em Illinois. Eles querem que seus casos
sejam processados, não apenas uma mudança do cenário vislumbrado por trás das
grades.
E assim os grevistas de
Guantánamo continuarão famintos. Parece quase uma tragédia kafkiana, misturando
burocracia e política em uma combinação que poderá ser letal. Como contou
Warner que al-Kandari lhe disse: "Eles não vão nos julgar. Eles não vão
nos deixar viver em paz e não vão nos deixar morrer em paz".
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