quarta-feira, 29 de maio de 2013

Historiadora diz ter sido cobaia de aula prática de tortura


A historiadora Dulce Pandolfi e a cineasta Lúcia Murat


Depoimentos confirmam a existência de laboratórios de treinamento de torturadores nas dependências do Exército no Rio durante a ditadura militar.




Fundação Maurício grabois
das agências

A historiadora Dulce Pandolfi e a cineasta Lúcia Murat denunciaram ontem, em depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio, a existência de laboratórios de treinamento de torturadores nas dependências do Exército no Rio durante a ditadura militar (1964-1985).
Primeira a falar, Dulce Pandolfi emocionou-se em diversos momentos e precisou fazer pausas. Atualmente pesquisadora da Fundação Getulio Vargas, Dulce tinha 21 anos e era membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL) quando foi presa em 20 de agosto de 1970. Ela passou um ano e quatro meses em poder dos militares e disse que foi torturada psicológica e fisicamente durante três meses no quartel da Polícia do Exército, onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). "Quando entrei, ouvi uma frase que até hoje ecoa nos meus ouvidos: 'Aqui não existe Deus, nem pátria, nem família'".
"O professor, diante de seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo", relatou Dulce, que foi cobaia em uma aula prática de tortura. "Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no pau de arara, ouvia o professor dizer: "Essa é a técnica mais eficaz"", lembrou. Lúcia afirmou que os militares testavam métodos de tortura, chamados eufemisticamente de "técnicas de interrogatório", com os presos numa espécie de laboratório.
A historiadora lembrou que o período mais severo foi o início, na primeira sessão de tortura, quando os militares tentaram obter o maior número possível de informações antes que seu desaparecimento fosse constatado pela ANL e por familiares. O método mais usado foi o choque elétrico, com o corpo molhado e preso ao pau de arara, contou Dulce, que foi também espancada e teve um jacaré colocado sobre seu corpo nu. A "aula de tortura", para demonstrar a eficácia dos choques elétricos em cada parte do corpo, foi quando ela completou dois meses de prisão. Ela não resistiu, precisou ser socorrida, mas a "aula" continuou momentos depois, com respaldo médico, no pátio do quartel. Foi aí que houve a simulação de fuzilamento, com militares apontando para ela um revólver com apenas uma bala.
"Essas coisas não podem ser naturalizadas. É como a miséria, é como ver uma pessoa caída no chão e achar normal. Esse é o grande ponto", disse Dulce Pandolfi após o depoimento.
Ainda assim, a prisão no DOI-Codi, um prédio oficial do exército, representou melhor sorte do que a reservada aos militantes das principais organizações armadas de oposição ao regime, torturados e assassinados em prisões extra-oficiais como a Casa da Morte de Petrópolis. "Eles não podiam mais me matar porque eu já estava oficialmente presa", disse.
A cineasta Lúcia Murat também foi espancada e sofreu choques elétricos e até abuso sexual por parte dos militares. Ela foi presa pela primeira vez em outubro de 1968, em um congresso estudantil, mas ficou apenas uma semana detida. Com a publicação do Ato Institucional 5 (AI-5), em dezembro daquele ano, com medo da prisão, Lúcia passou a viver na clandestinidade, mas foi encontrada e levada em 1971 para o mesmo quartel em que Dulce foi presa, e ficou detida três anos e meio.
Lúcia contou que as primeiras horas de tortura foram as mais intensas e que chegou a perder os movimentos das pernas por algum tempo. Na tentativa de se suicidar, ela chegou a enganar os militares para ser levada a uma varanda, fazendo-os acreditar que daria sinal para militantes, mas uma substituta encenou no lugar dela: "Foi a pior sensação da minha vida. A de não poder morrer". Lúcia chegou a ser levada para Salvador, onde foi apenas interrogada, e trazida de volta ao Rio de Janeiro. Em outra ocasião, ao participar de uma auditoria na Marinha, denunciou a tortura perante juízes militares, que a mandaram de volta para o DOI-Codi, onde sofreu deboche e mais sessões de tortura.
A cineasta defendeu o papel da Comissão e disse esperar que os torturadores sejam responsabilizados por seus atos. "A criação da Comissão Nacional e das comissões estaduais é o primeiro passo nesse sentido. Diferentemente de outros países latino-americanos, nós estamos muito atrasados nesse processo", criticou.
Presente ao evento na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), o diretor-executivo da Anistia internacional no Brasil, Átila Roque, pediu que a discussão acerca da revisão da Lei da Anistia seja retomada. "Os trabalhos da comissão e os desdobramentos que ela provoca vão colocar a sociedade, o Estado e as instituições brasileiras diante do imperativo da Justiça", disse. "Não há mais como tentar evitar essa conversa. Temos que rever a própria Lei da Anistia".
Ainda que os torturadores cobrissem com esparadrapos seus nomes nos uniformes militares, as vítimas conseguiram identificar as identidades de alguns deles, como o major Demiurgo, então chefe do DOI-Codi; o major PM Riscala Corbage, conhecido como Nagib, e o agente da Polícia Federal Luiz Timóteo de Lima, além do médico Amilcar Lobo, que liberava os presos para as sessões de tortura no DOI-Codi.
A partir dos relatos das vítimas, a comissão da verdade do Rio vai relacionar os nomes dos torturadores e convocá-los para prestar depoimento, disse o presidente da comissão estadual, o advogado Wadih Damous. "Se vivos estiverem serão chamados". Segundo ele, a Comissão Nacional da Verdade terá nos próximos dias uma representação no Rio para colaborar mais intensamente com a Comissão Estadual.
Tanto Dulce Pandolfi quanto Lúcia Murat destacaram o sadismo dos militares durante as sessões de tortura, embora lembrassem que foram tratadas de forma "mais humana" por outros. As duas contaram que um soldado se ofereceu para levar bilhetes para seus parentes e que as mensagens chegaram aos destinatários.
O coordenador da comissão e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, Wadih Damous, disse que o objetivo das sessões é sensibilizar a população: "É preciso mostrar, sobretudo aos mais jovens, que a tortura foi uma política de Estado e que pessoas corriam risco de vida por pensar [de maneira] diferente". Ele informou que estão previstos outros depoimentos, inclusive de agentes civis e militares da época.
Diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque considerou fortes os depoimentos e disse que eles são uma forma de olhar para problemas atuais: "Foi o relato de um momento histórico em que o governo foi carrasco, foi algoz. Esses trabalhos são também para convidar a sociedade e os jovens a refletir sobre essa história e a enfrentar os problemas que ainda persistem hoje. No momento em que estamos ouvindo esses relatos, há pessoas sendo torturadas nas prisões."

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