PARA ALÉM DO BLOQUEIO AOS MÉDICOS CUBANOS
Por Pedro Porfírio*
Quando fiz a defesa documentada
do vitorioso modelo de medicina adotado em Cuba, cuja maior referência é a
inquestionável gama de avanços em benefício de uma população que sobrevive com
dignidade, franciscanamente, a um criminoso bloqueio econômico de mais de 40
anos, não imaginava que ia mexer num
frenético vespeiro e suscitar reações psicodélicas, muitas permeadas de
palavrões e de uma agressividade que revela desequilíbrio, insegurança e imaturidade, merecedores de tratamento especializado.
Tudo numa tentativa infantil de mudar o foco da questão
A diferença concreta entre a profilaxia de ganhos reais exibidos pela
Organização Mundial de Saúde e a indústria do tratamento robotizado, que torna
o médico um autômato sem obrigação de
raciocinar, custa os olhos da cara e inviabiliza a prática da medicina sem o
uso abusivo da parafernália
eletro-magnética.
Em nenhum momento há qualquer
referência nos mais de 180 comentários postados às benesses de um Estado que
gasta uma grana preta com jovens de boa situação, que representam a grande
maioria das faculdades estatais e delas saem para o “mercado” sem qualquer compromisso com a
sociedade que os bancou num regime absolutamente injusto de alocação dos
recursos públicos para educação: só o terceiro grau abocanha 51% (R$ 18
bilhões), isso sem falar nos facilitários de programas de renúncias fiscais e
subvenções, como o Prouni.

A grande preocupação dos
adversários da contratação de cubanos é apontá-los como inaptos, exigindo que se submetam a uma prova
enigmática, como bem descreveu o leitor Nelson da Cunha, inspirada no modelo
doentio equivocado que drena para um ralo as verbas oficiais, impondo um
insólito constrangimento diplomático do tipo:
"Precisamos dos seus médicos, mas não
confiamos na aptidão dos mesmos atestada por suas universidades".
Esses não são imigrantes avulsos que se mudariam de
mala e cuia, mas profissionais selecionados nos termos de convênios entre
nações que devem respeito mútuo, com experiência em outros países, os quais só
serão chamados devido à determinação dos patrícios de preferirem o litoral onde
se esbaldam em exames sofisticados, muitos desnecessários, e nas vantagens das
variadas fontes de renda.
Prova, aliás, a que não submetem os nossos recém-formados que, ao contrário dos advogados, podem saltar direto de um pardieiro mercantil, com médias baixas e conhecimento relativo para o exercício pleno e incontrolável do trato com a vida, saltos responsáveis por alarmantes taxas de sucessivos erros médicos, o que levou o Ministério da Saúde a lançar este ano o Programa Nacional de Segurança do Paciente.
Também em nenhum dos comentários
discordantes se viu uma autocrítica honesta sobre as notórias deficiências de
muitos dos nossos profissionais, cuja maior protuberância é o excesso de generalistas
sem especialidades. Segundo o próprio Conselho Federal, dos 388.015 médicos do
país, 180.136 deles, ou 46%, não têm especialidade, o que significa uma
temeridade para o conselheiro Desiré Callegari, diretor de Comunicação do CFM.

A legislação do Brasil permite
que qualquer médico graduado aqui, em qualquer das 200 faculdades existentes,
mesmo sem ter feito residência médica, exerça qualquer especialidade.
"Esses médicos que, por algum motivo, não obtêm especialização costumam ir
para áreas da medicina que necessitam de mais profissionais, como na atenção
primária de saúde ou nos atendimentos de urgência ou emergência", diz
Callegari: "a população acaba sendo exposta a profissionais menos
experientes e qualificados nesses atendimentos. O médico exerce a sua profissão
com pouca experiência em relação a diagnósticos e orientações de tratamentos,
por exemplo."
Resistência também aos
medicamentos genéricos
Sabia que havia qualquer coisa de deprimente e deplorável na área, fruto da atuação perniciosa do poderoso e ultra-lucrativo complexo farmacêutico (temos mais farmácias hoje do que padarias), do sistema viciado de terceirização do SUS, das práticas levianas de burla das obrigações funcionais, do complexo de interesses vorazes emanados dos planos de saúde e de uma didática acadêmica perigosamente voltada para a robotização dos profissionais de saúde.
Mas não imaginava que o estrago
já se enraizara em várias gerações, explicando por que nenhum cidadão comum se
sente no gozo do direito constitucional à assistência médica. Ou por que
operários da construção civil (como os que reconstruíram o Maracanã) fazem greves para
exigir contratações de planos privados de saúde? E por que empresas e
“cooperativas” de medicina de grupo deitam e rolam, arrancando aumentos cada
vez mais extorsivos principalmente nos planos-empresas, que estão livres de
controles oficiais?
Ainda tenho esperança que os
defensores da reserva de mercado que expõe um ralo com dinheiros públicos sejam
minorias. Que minorias sejam os que estão inviabilizando os serviços de saúde
para tirar proveitos pessoais indecorosos,
que sequer aceitam receitar um genérico por seus laços de dependência
com laboratórios que lhes prestam todo tipo de carinho.
Imagino que a maior parte da
classe médica entende que o seu legítimo direito à remuneração justa pela alta
relevância de seu trabalho não passa por um jogo sujo que torna muito mais
numerosa a rede de sanguessugas infiltrados em todos os labirintos da saúde ou
atuando sem recato no superfaturamento e
na fraude de serviços, na indústria de exames caros, de cirurgias
desnecessárias ou mesmo na avalanche de cesarianas forçadas.
A possível contratação de médicos
fora do Brasil pôs a nu uma inquietação epidêmica e epidérmica, expondo as
vísceras de um ambiente contaminado, a certeza de que há algo de podre a ser
diagnosticado pelos médicos sérios, como o dr. Aloysio Campos da Paz, da Rede
Sarah, que teve de dar um chega pra lá
nos próprios colegas e colocar-se ao lado dos pacientes para garantir a
excelência do hospital que dirigia.
Governador de direita recorreu aos médicos cubanos
Junto com o destempero de recados
intolerantes postados no nosso blog, o pior que aconteceu foi a tendência
doentia de ideologizar e partidarizar as divergências, com expressões boçais
que não podem ter partido de médicos ou estudantes de medicina, pois se assim
fosse a necessidade de um choque de sensatez numa corporação envolvida
diretamente com a vida e a morte seria uma operação de emergência inadiável.
Corporação que não tem nada com maus hábitos fatais, como daquela médica do
Paraná, especialista em abreviar a morte dos pacientes terminais.
Mal sabem esses subprodutos de um
passado obscurantista que quem primeiro recorreu aos médicos cubanos foi um
GOVERNADOR ASSUMIDAMENTE DE DIREITA, no passado ligado à linha dura do
regime militar. Isso mesmo: principal artífice do Estado de Tocantins e
primeiro chefe do seu Executivo, José Wilson de Siqueira Campos, que foi da
Arena e do PDS, viu que só mesmo com um novo modelo de medicina pública, tal
como se praticava naquela ilha, seria possível equacionar os problemas de saúde
de muitos dos seus 139 municípios, dos quais 73 com menos de 5 mil habitantes.
Quando o CRM de Tocantins
conseguiu a primeira liminar contra os médicos cubanos, seu filho, o senador
Eduardo Siqueira Campos, do PSDB, subiu à tribuna para exigir do então
governador Marcelo Miranda uma atitude corajosa em defesa daquele programa, que
vinha produzindo resultados visíveis para a população do seu estado. “Há oito
anos, em virtude de convênio, dezenas de médicos cubanos vêm atuando nos
pequenos municípios de Tocantins, onde conseguiam prestar excelentes serviços
de saúde à comunidade”.
R$ 35 mil para ter um ortopedista
A segunda aleivosia desses
ignorantes de má fé foi creditar à presidente Dilma Rousseff e ao PT, com fitos
eleitorais e em face de “afinidades ideológicas”, a iniciativa de recorrer à
contratação de médicos estrangeiros, especialmente os cubanos.
Foi a Frente Nacional dos
Prefeitos que promoveu uma ida em massa à Brasília com o objetivo de pedir ao
governo federal a imediata contratação de médicos fora do país e a redução das
exigências do CFM. Muitos alegavam que
nem oferecendo salários superiores aos das grandes cidades conseguiam atrair profissionais
litorâneos para seus municípios.
Houve um caso, no município
maranhense de Açailândia, a 559
km de São Luiz, em que a Prefeitura levou um tempo e
teve de colocar anúncios em jornais de outros Estados para contratar um
ortopedista, oferecendo a bagatela de R$ 35.000 por mês. E olha que não se trata de uma cidadezinha:
com a maior renda per capita do Maranhão, 104 mil habitantes e uma crescente
atividade empresarial, ela conta com um hospital municipal de médio porte, além
de 43 estabelecimentos de saúde, dos quais 37 ligados ao SUS. Por acaso, o
Estado do Maranhão é o que registra a menor relação médico-população – 0,7 por
1000 hab.

Se um município desse porte teve
que apelar, que dirá a situação de mais dois mil municípios onde moram pessoas
até hoje dependentes da medicina caseira, de curandeiros ou de longos
deslocamentos para avistar alguém de jaleco branco.
Mas não foram apenas os do
interior que pleitearam a imediata contratação de médicos de fora para implementarem
o programa saúde da família. O prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, em
encontro com a presidente Dilma Rousseff, defendeu a contratação de médicos estrangeiros para
atuar em hospitais da rede pública da Capital. Para ele, seria uma forma de atender
às reclamações de gestores municipais de todo o País sobre a falta de
profissionais interessados em trabalhar nas periferias das grandes cidades.
Brasileiros recusaram incentivos do governo
Toda a classe médica está sabendo
que de há muito o governo federal vem incentivando à interiorização de
profissionais. Além do Programa Nacional
de Valorização do Profissional de Atenção Básica – o Provab - , o Ministério da
Saúde, em conjunto com o da Educação, incluiu no mesmo pacote o Programa Pro -
Residência, que prevê a abertura de
residências médicas para formação de profissionais nas especialidades e nas
regiões onde são necessários.
Ofereceu também abatimento no saldo devedor do FIES, financiamento da Caixa Econômica, com valores
proporcionais ao período em que trabalharem em um dos 2.282 municípios (40,7%)
oficialmente com carência de profissionais na atenção básica.
No entanto, muitas prefeituras não conseguiram implementar o Provab, programa que também oferece curso de pós-graduação em Saúde da Família, e uma bolsa mensal do governo federal no valor de R$ 8 mil durante um ano. Neste ano, o Provab recebeu 4.392 médicos nos serviços de atenção básica de saúde em 1.407 municípios. Esses números correspondem a menos de 30% da meta estabelecida.
Uma geração voltada para a medicina robótica
Parece claro que o grande
problema está na didática manipulada sob influência de quem ganha excessivamente
com o tratamento das doenças, em grande parte
resultantes da falta de informação adequada. Embora muitas das
faculdades de medicina tenham problema até de cadáveres, o jovem sonhador, que
veio de colégios caríssimos e ganha casa, comida e roupa lavada às nossas
custas, é induzido a concentrar-se na medicina robótica, em que não terá de
queimar a mufa e recorrer à sua sensibilidade, talento e vocação. E
provavelmente não lhe passa pela cabeça a dívida que teria de saldar pela
habilitação onerosa a custo zero para ele.
Como os pilotos dos jatos
modernos, nossos acadêmicos embarcaram na dependência de diagnósticos por
aparelhos de alta tecnologia, ao contrário que acontecia com as antigas
gerações, como a do meu irmão já falecido,
cearense formado na Universidade da Bahia, que salvou muitas vidas
quando tais geringonças não existiam.
Para alguns, provavelmente uma
minoria, a farra do recurso à “medicina nuclear” tem outras motivações nada
científicas, assim como no abuso de cirurgias, prática que já levou as
autoridades norte-americanas a promoverem um choque contra os exageros, já nos
anos setenta.
É muito deprimente que alguns
médicos brasileiros tenham perdido a noção da realidade, por conta da
manipulação inconsciente em que se envolvem. É claro que os avanços
tecnológicos não podem ser recusados, mas o conhecimento do paciente em toda a
intimidade, como acontece no sistema do médico de família é muito mais eficaz,
principalmente quando a ele se tem acesso antes de contrair doenças evitáveis pela
orientação preventiva.
Muitos médicos brasileiros,
porém, se sentem ameaçados e não querem nem ouvir falar em cuidados
profiláticos e em políticas mais permanentes, como o saneamento básico e a educação alimentar, que reduziriam
ao mínimo as filas nos consultórios, clínicas e hospitais. Pelos mesmos motivos
esses profissionais se recusam a receitar genéricos, induzindo pacientes a
acreditarem que não são medicamentos confiáveis.
Veja no que dá a febre de exames
como a ressonância

Gestão da saúde nas mãos de
médicos de alto a baixo
Independente de preferências
ideológicas é preciso reconhecer que, embora tenha o maior orçamento do país em
relação a outras áreas, inclusive educação, a saúde pública brasileira é
extremamente precária. Somando os
orçamentos da União, estaduais e municipais, chegamos a R$ 150 bilhões em 2012
e a população continua apontando o sistema de saúde como o maior vilão do
serviço público.
É preciso lembrar que toda a rede
pública está em mãos de médicos, do Ministério da Saúde ao diretor do posto
local. Não é honesto abstrair essa informação básica. Médicos costumam fazer
lobbys, procurar políticos e apoios classistas para assumirem as direções e os
orçamentos das unidades de saúde, cortejadas por inescrupulosas máfias de
fornecedores e prestadores de serviços.
Muitos sequer têm conhecimento de
administração hospitalar, mas não medem
expedientes para ter uma nesga do poder na área. Quando um profissional alega que falta tudo numa unidade de saúde, e falta
mesmo em muitos lugares, ele tende a culpar os governos, que podem também ser
responsabilizados. Mas e o seu colega que trocou o paciente por uma chefia? E o
material que some como um fato consumado e corporativamente abafado?
Compras superfaturadas,
relacionamentos promíscuos com fornecedores e tolerância com colegas que não
aparecem (lembram do caso recente no Hospital Salgado Filho, do Rio de
Janeiro?) são praticados por colegas sob o constrangimento do corporativismo: o
diretor de hoje pode ser o subordinado de amanhã e vice-versa.
Tudo isso se junta na barricada
contra o modelo preventivo, que é desprezado mesmo nas unidades públicas criadas com esse fim,
como acontece nas clínicas de saúde da família
implantadas pelo prefeito Eduardo Paes, no Rio de Janeiro. Aí, além das
barreiras corporativistas, pesa também a falta de informação da população, que
não faz diferença entre uma clínica dessas e uma UPA de pronto socorro.
Temos, portanto, um impasse de
natureza conceitual. No Brasil onde todos querem se dar bem da noite para o
dia, é cada vez mais difícil reformular as políticas de saúde, sem que haja um
movimento de fora para dentro do sistema, pensando primeiro na população, sem que isso signifique postar-se contra a
corporação.
É sobre a necessidade de mudar
que escreverei meu próximo artigo.
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* PEDRO PORFÍRIO é jornalista, escritor e teatrólogo.
Tornou-se repórter muito jovem e exerceu várias funções públicas, como
Secretário Municipal de Desenvolvimento Social por duas vezes, bem como
mandatos de vereador no Rio de Janeiro em 4 legislaturas.

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