Emocionada, Priscila Arantes depõe sob o olhar do presidente da Comissão, deputado Adriano Diogo |
As feridas sempre abertas de uma
infância roubada
As feridas sempre abertas de uma
infância roubada
Por Tatiana Merlino* |
Para aqueles que lutam por
memória, verdade e justiça, a última sexta-feira poderia ter sido uma data
marcada apenas pelo cinismo e pela mentira, com o depoimento à Comissão
Nacional da Verdade do ex-comandante do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra,
declarado torturador pela Justiça de São Paulo. Só não o foi porque nesse mesmo
dia houve o encerramento da emocionante semana do seminário “Verdade e Infância
Roubada”, organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva”,
quando filhos de ex-presos, mortos, torturados e desaparecidos políticos
testemunharam sobre os impactos, traumas e sequelas que a ditadura
civil-militar deixou em suas vidas.
Enquanto em Brasília Ustra
gritava e dava socos na mesa ao negar ter cometido crimes durante a ditadura,
dizendo que “cumpria ordens” e que lutou para que o Brasil não virasse um
“Cubão”, em São Paulo os irmãos André e Priscila da Cunha Arantes, filhos do
casal de militantes Maria Auxiliadora da Cunha Arantes e Aldo Arantes,
ex-deputado federal (PCdoB), falavam sobre a experiência de sua prisão, em
1968, quando tinham somente três e dois anos, respectivamente.
Foi em 13 de dezembro de 1968,
dia da promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que as crianças foram
presas com Maria Auxiliadora em Paracoinha, interior de Alagoas. Passaram pelo
Dops de Maceió, pela Cadeia Pública, pela Escola de Aprendizes de Marinheiros e
pelo Hospital da Polícia Militar. No pátio do hospital, junto com o lixo
hospitalar, havia ratos, que corriam para lá e para cá. “Era um lugar horrível,
mas eu me sentia seguro, pois estava com minha mãe”, disse André, para uma
plateia emocionada, onde estavam, além de seus pais e familiares, ex-presos
políticos e seus filhos. Para amenizar a situação em que Priscila e André
estavam, a mãe de ambos “apelidou um dos ratos de Jerry [personagem de animação
da série estadunidense Tom & Jerry]”, recordou André.
Enquanto estavam presos, um
oficial da Marinha sugeriu à Maria Auxiliadora que entregasse o filho para que
ele criasse, alegando que teria mais condições de proporcionar um futuro para a
criança. André, que hoje trabalha no Ministério dos Esportes, disse à mãe: ‘“Eu
sei que hoje você queria encontrar com aquele oficial que quis me levar e dizer
a ele: ‘o futuro do meu filho seria melhor comigo’”.
Ao longo da semana de 6 a 10 de maio, foram ouvidos
cerca de 30 filhos e filhas, hoje adultos na faixa de 40, 50 anos, cujas
histórias até agora não haviam sido reunidas. O que existia de registro, até o
momento, era o importante documentário “15 filhos”, de 1996, dirigido por Marta
Nehring e Maria de Oliveira e que retrata as memórias de 15 filhos de
militantes políticos.
Os depoimentos foram marcados por
lembranças da prisão, de questionamentos em relação às suas identidades, de
medo, insegurança, isolamento, solidão e vazio que, em muitos casos, são
traumas não superados. Entre as histórias, casos de crianças que foram
sequestradas, levadas aos órgãos clandestinos de repressão, vítimas de
violência física e psicológica, exiladas, banidas. Casos de filhos obrigados a
viver longe de seus pais, com nomes falsos, parentes distantes. Viram seus pais
serem torturados, humilhados.
Passados quase 30 anos do fim da
ditadura, num país onde a transição para a democracia segue inconclusa, onde
há corpos insepultos, arquivos não
abertos, histórias não contadas e uma Comissão da Verdade tardia, dedicar uma
semana para testemunhos de filhos de ex-presos políticos é fundamental para se
ter um panorama da perversidade do aparato implantado pelo Estado de exceção.
Por conta desse atraso em trazer
a verdade à tona, em punir os torturadores, reinterpretar a Lei de Anistia –
que não anistiou os torturadores –, fica difícil mensurar a extensão dos
impactos da ditadura. Eu, por exemplo, sobrinha de Luiz Eduardo Merlino,
jornalista assassinado na Operação Bandeirantes (Oban) em 1971, sob o comando
de Ustra, só consegui dar conta da dimensão dos efeitos da ditadura sobre mim
ao longo dessa semana. Eu não apenas sou familiar de uma vítima do regime
militar. Não apenas testemunhei o sofrimento causado em minha avó e testemunho
ainda hoje a dor provocada em minha mãe. Eu vivi e vivo essa dor, além de ter
sido privada da convivência com meu tio.
Na manhã de sexta, logo depois de
Ustra negar o inegável, chamar o vereador Gilberto Natalini (PV) de terrorista
e defender a detestável “teoria dos dois demônios” na audiência à CNV, o
coordenador da assessoria da Comissão da Verdade de São Paulo, Ivan Seixas,
lembrou que Ustra torturou pessoalmente o deputado estadual Adriano Diogo (PT),
presidente da comissão estadual, e foi o responsável pelo assassinato de seu
pai, Joaquim de Alencar Seixas. “Aqui temos eu, o Adriano, a Amelinha e a
Crimeia, entre os muitos que foram torturados pessoalmente por Ustra”, lembrou
Seixas.
Condenado no ano passado como
torturador em ação movida por Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto
Teles e Crimeia Alice Schmidt de Almeida, pelas violências cometidas contra os
três entre 1972 e 1973, Ustra teve a audácia de dizer que os filhos de Amelinha
e Teles, Janaína e Edson (de 5 e 4 anos na época), que foram sequestrados e
levados ao DOI, estavam sendo muito bem tratados. “Ele defende isso como um ato
de benevolência”, lembrou Edson Teles.
Colocados num camburão cheio de
armas, Edson e Janaína foram levados ao DOI-Codi e confrontados com seus pais
recém-saídos da tortura, sujos e machucados. “Vi corpos marcados, roxos. Vi um
rosto desfigurado, falando comigo e me perguntei: ‘Quem é essa pessoa que tem a
voz e o jeito da minha mãe?’.” Edson não sabe precisar por quantos dias ele e
Janaína ficaram no centro de repressão, mas recorda-se de muitas cenas do
local. “Éramos usados para fazer nossos pais falarem.” Depois de alguns dias,
os irmãos foram levados para morar na casa de um parente, delegado de polícia.
“Era uma espécie de cárcere
privado”, lembra. Lá, moravam no quarto dos fundos, acordavam cedo e tinham
tratamento diferente dos filhos da família, que saíam aos domingos para passear
e ganhavam presentes. Um dia, o tal delegado disse: “vou te levar ao
zoológico”. O zoológico era a delegacia na qual ele era titular. Chegando lá,
levou Edson à área da carceragem e, apontando para os presos, dizia: “Esse é o
veado… essa é a cobra”. “Era uma perversão comigo e com eles. O que me marcou
nessa experiência foram os olhares dos presos”, disse Edson, hoje com 45 anos e
professor da Unifesp.
Anos depois, já morando com sua
família, Edson ia visitar o pai, César Teles, condenado a anos de prisão por
sua militância no PCdoB, no Presídio Romão Gomes. Edson ia vestido como uma
espécie de “agente secreto da resistência”, usando roupas que acreditava que o
disfarçaria: jaqueta, chapéu e óculos. Para ver os parentes presos, precisavam
passar por uma revista.
Foi então que ele resolveu
cometer um “ato de resistência”: fez um buraco no casaco com a ajuda de sua tia
Crimeia e lá escondeu um potinho de tinta guache. A ideia era passar
despercebido pela revista. Quando chegou ao presídio, a policial percebeu que
ali havia um volume, mas não conseguia ter acesso à tinta, porque havia uma
abertura falsa. “Ela me perguntava como chegar ao objeto, mas eu, que já havia
aprendido na escola a ser cínico e mentir, não respondia. Ela pediu autorização
para liberar a minha entrada e assim aprendi que conseguia burlar a ditadura”,
contou Edson.
Quem também foi levada quando
bebê à Operação Bandeirantes foi Carmen
Nakasu, filha de Elzira Vilela e Licurgo Nakasu. Era setembro de 1973 quando
seus pais e ela foram presos na Estação da Luz, em São Paulo, quando tentavam
viajar para o Rio de Janeiro. “Entrega a menina!”, disseram à Elzira, antes de
encapuzá-la.
A menina de um ano ficou cerca de
cinco dias nas mãos dos policiais. “Antes do sequestro eu era uma criança
alegre, extrovertida, que gostava muito de tomar banho. Quando voltei para meus
familiares, tinha pavor de banho e do som de água.” Até não muito tempo atrás,
ela ainda se apavorava com o som de uma descarga de vaso sanitário. “Fui uma
criança muito tímida e insegura, não me relacionava com colegas. Eu tinha uma
angústia tremenda, falta de ar, e fiz terapia desde muito cedo”, relatou.
Um dos sentimentos mais fortes
presentes nos depoimentos dos filhos de presos foi o de ter os corpos de seus
pais insepultos, como Tessa Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda e Mariluce
Moura, presos em outubro de 1973.
A mãe, grávida, foi libertada dias depois. Já o pai
morreu sob torturas. O corpo nunca foi entregue à família. “Aos nove anos eu
alimentava o sonho solitário de que ele voltaria. Isso se deve à ausência do
corpo, ao fato de não haver um túmulo. Isso me impede de fazer o rito, aceitar
que ele está morto”, disse, sob lágrimas.
“Isso não é justo com ele, com os
pais dele, com minha mãe e com meus filhos. Não adianta me explicarem
cientificamente que não é possível. É a criança falando ‘eu quero enterrar meu
pai’”. Para ela, “mais doloroso do que saber que minha mãe foi torturada comigo
na barriga é não poder enterrar meu pai”. Tessa, assim como outros filhos que
testemunharam durante a semana “Verdade e Infância Roubada”, relataram que em
seus documentos de identidade e certidões de nascimento não tinham o nome de
seus pais até a adolescência ou até a idade adulta. “Não havia nome nenhum de
pai na minha certidão. Passei por situações constrangedoras por conta disso”,
contou.
A Comissão ouviu ainda dois casos
de filhos que nasceram nos cárceres da ditadura: Paulo Fonteles Filho e João
Carlos Schmidt de Almeida Gabrois, o Joca. O primeiro veio ao mundo em 1972, no
Pelotão de Investigações Criminais (PIC) em Brasília, em fevereiro de 1972. O
parto foi feito sem anestesia, mas a mãe, Hecilda Veiga, manteve-se firme, sem
chorar. Diante da bravura, um agente da ditadura disse: “Filho desta raça não
deve nascer”.
Joca nasceu no hospital do
Exército de Brasília, em fevereiro de 1973, onde ficou por três meses. Sua mãe,
Crimeia Alice Schmidt de Almeida, guerrilheira do Araguaia, foi torturada mesmo
estando grávida. “Quando saí da cadeia, com três meses de idade, minha mãe
colocou nas fraldas um diário contando sua história e a da guerrilha, pois
acreditava que não sairia viva da prisão”, disse Joca, que não conheceu o pai,
André Grabois, assassinado em 1973.
Um dos casos mais terríveis da
ditadura militar – e um dos que mais me impressiona – é o de Nasaindy Barret de
Araújo, filha de José Maria Ferreira Araújo e da militante paraguaia Soledad
Barret Viedma, assassinada no chamado Massacre da Chácara São Bento, ocorrido
em 1973 em Paulista, na Grande Recife. Araújo e Soledad se conheceram em Cuba,
durante treinamento militar. O pai de Nasaindy, militante da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), desapareceu em 23 de setembro de 1970, quando foi levado
ao DOI-Codi – testemunhas relatam que ele morreu em decorrência das torturas e
maus-tratos a que foi submetido.
Nascida em Cuba, Nasaindy foi
adotada pela família de Damaris Lucena, quando seus pais voltaram ao Brasil
para seguir a militância política. “Com 10 anos, tomei consciência da perda de
meus pais e comecei a sofrer muito”. Ela voltou ao país em 1980, com 11 anos de
idade, e apenas em 1997, 16 anos depois de retornar, conseguiu se naturalizar
brasileira e assumir o nome verdadeiro dos seus pais, já que havia sido
registrada com documentos falsos para despistar os militares. “No Brasil,
fiquei 16 anos como clandestina. Tive um problema grave de identidade e de
adaptação. Foi um choque muito grande voltar para cá, as coisas foram bem
complicadas. Eu me sentia distanciada, solitária, como um ET, vinda de outro
mundo.”
Nasaindy disse que não tem
lembranças de seus pais, mas afirma ter localizado, na terapia, o momento de
despedida com a mãe. “É uma questão muito difícil de se lidar, a forma como ela
foi assassinada”. Soledad foi morta após traição do agente infiltrado Cabo
Anselmo, que à época era seu companheiro, e de quem estava grávida.
Um filho que não pôde contar sua
história foi Carlos Alexandre Azevedo, que com 1 ano e 8 meses apanhou na
própria casa, para depois ser levado ao Dops. Anos depois, em fevereiro de
2013, aos 39 anos, não aguentou mais resistir aos traumas e se suicidou. “Sinto
que ele poderia estar aqui hoje, falando”, disse sua mãe, Darcy Andozia. Presa
em 15 de janeiro de 1974, encontrou seu filho e a babá no Dops. “Ele estava com
o lábio cortado.” Ela lembrou que o menino teve uma infância muito difícil.
“Na escola, era chamado de
terrorista, apanhava dos colegas… ele foi se fechando cada vez mais. Os médicos
diziam que o trauma que ele sofrera foi muito grande.” A mãe de Carlinhos, como
era conhecido, disse que o filho lutou muito para se reinserir na sociedade,
“mas não conseguiu”. Darcy contou ainda que numa noite poucos dias antes de
morrer, estava na casa de uma amiga e ligou para o filho, que morava com ela.
“Minha amiga perguntou a ele se eu podia ficar mais lá, e ele respondeu que
não: ‘Quero que minha mãe venha para casa’. Três ou quatro dias depois, de
madrugada, ele se suicidou”, recordou.
No encerramento da semana de
audiências sobre as crianças afetadas pela ditadura, Maria Amélia de Almeida
Teles lembrou que a ação violenta dos militares “tentou destruir a infância de
nossas crianças, que tiveram sim a infância roubada. Em todas as histórias,
vemos a ausência e a violência. Ainda hoje há muita gente com feridas abertas,
que sangram o tempo todo”.
* Tatiana Merlino é repórter e
sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, assassinado sob tortura em São Paulo. A
reportagem só foi possível graças ao financiamento dos leitores do Viomundo
para a produção de conteúdo próprio. Colabore clicando aqui.
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