segunda-feira, 22 de julho de 2013

1998: Jânio, FHC e o diabo conhecido





Emiliano José
São diversas as táticas midiáticas na eleição presidencial de 1998. Não variam, no entanto, quanto à estratégia: derrotar Lula, como nas duas eleições anteriores. A contribuição da velha mídia foi essencial para a eleição de Fernando Henrique. Afinal, o neoliberalismo era o seu projeto e o candidato tucano foi o mais perfeito executor desse projeto no Brasil



O Príncipe conservador neoliberal que a mídia ajudou a construir para substituir
O Príncipe conservador neoliberal que a mídia ajudou a construir para substituir Collor continuava à frente do destino do Brasil
Foto: Dida Sampaio/Agência Estado



Uma das principais características do jornalismo no Brasil,hoje, praticado pela maioria da grande imprensa, é amanipulação da informação. O principal efeito dessa manipulação é que os órgãos de imprensanão refletema realidade. A maior parte do material que a imprensaoferece ao público tem algum tipo de relaçãocom a realidade. Mas essa relação é indireta.É uma referência indireta à realidade, mas quedistorce a realidade. Tudo se passa como se aimprensa se referisse à realidade apenas paraapresentar outra realidade, irreal, que éa contrafação da realidade real. É uma realidadeartificial, não-real, irreal, criada e desenvolvidapela imprensa e apresentada no lugar darealidade real.


ABRAMO, Perseu. Padrões de Manipulação
na Grande Imprensa. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003, p. 23/24



Maio de 1998.

Fernando Henrique Cardoso quase se converte num Jânio Quadros.

  Faltou pouco.

                                      Não se sabe se falaria em forças ocultas.

Esteve, no entanto, prestes a renunciar. Ou ao menos, ameaçou. Mais de uma vez. Estava incomodado com as notícias ruins. A mídia estampava manchetes desagradáveis. Seca e saques no Nordeste. Incêndio em Roraima. Desemprego ascendente. E Lula crescendo. A mídia, até de modo surpreendente, rendia-se à evidência dos fatos. E fatos muitas vezes não são propriamente agradáveis para quem está no governo.

Que diabo era isso? Não o respeitavam mais? Fernando Henrique não se conformava com o cenário que era desenhado pela mídia. Cenário que tinha a ver com a realidade do país. Mas, a realidade, sabia ele, sociólogo de profissão, podia ser construída de diversas maneiras.  

Já acumulara experiência, sabia como lidar com o poder e como submeter a elite brasileira. Naquele maio, gastou entre três a quatro dias para conversar com vários dos grandes empresários do país, barões da classe dominante. Saiu de sua habitual moderação. Chutou o pau da barraca. Assustou-os com a perspectiva da renúncia, anunciada claramente. Nunca vai se saber se era pra valer. “Não sou candidato de mim mesmo. Vocês é que sabem”.

Ruim com ele, pior sem ele, a elite voltou a raciocinar na sua pequenez de sempre, uma burguesia sempre medrosa. Raciocinava com a teoria do mal menor. E bateu continência para Fernando Henrique. Afinal, parafraseando Marx, um espectro rondava o Brasil, o espectro de Lula. Fernando Henrique teve até a tentação de citar Marx, que conhecia desde os tempos em que participava de um círculo de estudos sobre O Capital, velhos tempos em que estudar Marx era moda. Lembrou-se até da abertura do Manifesto Comunista, tão famosa: Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Abertura famosa, repetida ad nauseam.

Bons tempos, quando dialogava sobre O Capital com Gianotti, Octavio Ianni, Paul Singer, Roberto Schwarz, até com Ruth, com quem já era casado, foi ali pelo final dos anos 1950, um grupo de estudos. Não o fez, no entanto. Citasse Marx, e poderia parecer pedante, coisa que nunca foi, sabia-se modesto. Sempre abominou esses intelectuais pretensiosos.   

Falou duro também com o baronato midiático, não com todos, mas boa parte, numa reunião provocada por ele. Que diabo era aquilo? Estavam querendo arriscar? Estavam dispostos a receber o Lula pelos peitos? Como se atreviam a dar aquelas manchetes sensacionalistas, com secas, saques e incêndios? Que soubessem: a persistir aquele bombardeio, tiraria o time, iria pra casa cuidar de seus estudos, voltaria a estudar a teoria da dependência de que gostava tanto. “Pra que melhor do que isso? Uma vida tranqüila. Pra mim, será muito bom”.  

Que soubessem: estava prestando um serviço à Nação. Se não o queriam mais, que dissessem. Iria embora. O baronato midiático piscou. Sabia do quanto ele havia cuidado dos interesses da mídia, inclusive de seus negócios. Não que ele falasse assim, que não seria grosseiro, deixou subentendido. Bateu na cangalha pro burro entender. E pra bom entendedor, meia palavra basta. Não sou candidato de mim mesmo, e preciso de apoio.

Necessitava mesmo era do silêncio da mídia sobre aquelas coisas negativas todas. Ora, ela não o havia ajudado a se eleger em 1994, não lhe dera mão forte com todo aquele espetáculo, aquela pirotecnia em torno do real? Agora, que custava minimizar a seca, esquecer o desemprego, incêndios, a crise social, o arrocho no salário mínimo? Por que aquela história de enfatizar a sua declaração de que eram vagabundos os que se aposentavam antes dos 50 anos? Que dissera, dissera, mas melhor esquecer. Melhor o silêncio. Tudo bem, na cobertura não havia mentiras, mas era possível colocar as coisas de outra maneira, de preferência, enfatizou, não tocar mais naqueles assuntos tão desagradáveis, tão explosivos, tão perigosos para sua candidatura.

Ou se fazia esse acordo, ou estava fora. Deu uma dura especial na Rede Globo, falou com os donos cara a cara, tinha créditos para tanto. Afinal, a Rede Globo fora tão acariciada, tão bem tratada por seu governo, e ela também embarcara na tragédia da seca que, tudo bem, tinha algo de verdadeiro, mas não com aquelas cores que o império de Marinho a desenhara, quase a reeditar Sinha Vitória, a cadela Baleia e Fabiano na imensidão do deserto nordestino caminhando para o Sul. Vidas Secas, por inteiro, nordeste graciliano. Pra que carregar assim nas tintas?

Quase recordou as palavras de Graciliano Ramos, de sua obra, que conhecia tão bem. Mestre Graça, de tantas glórias. Teve vontade de citar também o Mestre, a exemplo de Marx. Não o fez, mas repetia mentalmente um trecho que o impressionara muito nas leituras de juventude. De como perceber estrelas nascendo no meio da escassez mais absoluta.  

Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse, e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros – e uma alegria doida enchia o coração de Fabiano.

Lembrou-se das palavras de Graciliano, assim a esmo, divagando, que gostava de divagar, enquanto ouvia o baronato global se explicar, tentando dizer que não havia feito por mal. Mas, que Graciliano que nada, qual a razão de gastar latim com esse povo? Nem entenderia. Tinha é que ser direto, pão, pão, queijo, queijo, cobrar um acordo, ou então, ponto final. Iria pra casa. E deixaria o baronato midiático na mão. Será que não era possível entender que Lula pairava sobre todos como um espectro, sempre? Não fora assim em 1989, em 1994? Não está sendo assim, agora?

Lula está ali, nos nossos calcanhares. Eu com 33%, Lula com 28%. E ele é persistente. Estão pensando que podem brincar com a sorte? Era ele o espectro, agora, a rondar. Voltou a insistir, bater na mesma tecla, que em certos momentos é necessário não tergiversar: Eu não sou candidato de mim mesmo. Isso comigo não existe. Ou eu tenho apoio ou volto para casa e deixo a farra por conta de vocês. Aí vocês elegem o candidato que quiserem.

E sempre ameaçava com Lula. Coisa que ninguém queria. Ninguém, que se esclareça, ninguém da elite.


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