Senhoras e senhores senadores,
venho hoje a esta tribuna para fazer uma confissão: eu confesso que tenho medo
de fantasmas. Esse pavor acentuou-se em minha recente viagem à Polônia e à
Suécia. Longe do Brasil, sob o frio europeu, com temperaturas nunca acima do
zero, frequentando ambientes já antigos antes que Cabral aqui aportasse,
elevou-se-me o terror às almas penadas.
A cada notícia do Brasil,
especialmente as notícias sobre a economia nacional, sobressaltava-me com o
desfile dos espectros que emergiam da tela do computador, da tela da televisão,
da tela do celular, das páginas dos jornais, dos boletins e releases dos
bancos, corretoras e empresas de consultoria, que a nossa gloriosa mídia usa
como fonte primária.
Como no filme “Poltergeist”, um
dos clássicos do cinema de terror dos anos 80, as assombrações surgiam,
reproduziam-se, envolviam-me. Mesmo que fantasmagóricas, ilusivas, era possível
reconhecer as aparições.
E lá vinham os avejões dos irmãos
Mendonça de Barros, o Luiz Carlos e o José Roberto. O primeiro, nada amistoso
para a circunstância de desencarnado, interpelava a presidente Dilma,
acusando-a de impor “condições inaceitáveis” às concessionárias privadas. Nos
limites da irresponsabilidade, reivindicava “condições de mercado” para as privatizações
petistas, semelhantes às da entrega da telefonia, da Vale, das ferrovias e comezainas
da espécie, como diriam os portugueses .
Ainda dando de dedo na
presidente, vi esfumar-se o Mendonção, e dá-se o aparecimento de José Roberto.
Suas apóstrofes dirigem-se ao “modelo do setor elétrico” do atual governo.
As reprimendas foram tão
incisivas que, assustado, vieram-me à lembrança aqueles anos, entre 1995-2002,
quando o Brasil quebrou três vezes, e não foi possível ver todos os estragos da
débâcle porque houve um apagão, tão denso que jornais, televisões, rádios não
puderam noticiar, por falta de luz e, certamente, também para não espalhar o
medo antipatriótico entre os brasileiros. Afinal o patriotismo é um recurso à
mão, quando faltam razões, como nos exemplifica aquele jornal a serviço do
Brasil.
Mal se evaporam os Mendonças,
emergem do vazio as barbas brancas de Gustavo Loyola, tantas vezes colocadas de
molho. Professoralmente, elas advertem: o Brasil não está preparado para
conviver com taxas de juros estruturalmente menores.
Proclamada a nossa incapacidade
atávica de se libertar dos usurários, as barbas do ex-presidente do Banco
Central desmancham-se em mil fios. Enquanto opera-se o prodígio, coça-me uma
pergunta: “Seriam os ares tropicais ou a nossa tão celebrada mulatice
responsáveis por essa inabilitação a desenredar-se da agiotagem?”.
Pela janela do hotel em Varsóvia
via a neve cair e aquela chuva branca produzia a ilusão de novos fantasmas.
Agora vinham em cortejo,
esvoaçando, voltejando, rodopiando, bailando na noite fria, de fraque e
cartola, pois era um cortejo de banqueiros, embora, embaçando-se no fundo da
cena, parecia-me que alguém vinha a cavalo, pelo porte um puríssimo árabe.
Banqueiros, corretores, financistas, ex-presidentes do Banco Central. Enfim,
uma finíssima coleção de espectros.
Não consegui identificar todos.
Goldfarb? Arida? Lara Rezende? Gustavo Franco? Bacha? Ou aquele lá poderia ser
Salvatore Cacciola?
Seja como for, como um jogral ou
o coro sinistro de uma tragédia grega, invectivavam contra o ministro Mantega,
a presidente Dilma, o PT, o Lula acusando-os de não entender nada de economia,
de” ignorantes dos fundamentos macro-econômicos”, de remendões pretensiosos que
ultrapassaram os limites dos chinelos, de perdulários, dissipadores da burra
pública.
Um deles, não consegui
identificar quem, embora uma vozinha miúda o traísse, gritava: “E a inflação? O
que é que o PT tem a me dizer da inflação? Hein, hein?”. A que outro fantasma
atalhou: “E a inadimplência? E a inadimplência? Não esqueça a inadimplência”.
Quando é que vai parar essa
gastança dos trabalhadores? As famílias já estão muito endividadas!”.
E eis que ouço um “oh!”
extasiante, comovedor. Os espectros financeiros apartam-se reverentes e, no
centro da fantasmagoria, surgem Milton Friedman e Eugênio Gudin, uma visagem
tão inesperada que me paralisa. De que profundezas, de que ideias tão fossilizadas
ergueram-se?
Pontificais, recitam a litania:
corte dos gastos públicos, redução do consumo, enxugamento do crédito e
elevação dos juros como mecanismos de combate à inflação, contenção dos
aumentos salariais, flexibilização das leis trabalhistas, abertura ilimitada ao
capital estrangeiro e à remessa de lucros para o exterior, privatizações,
terceirizações, concessões….. …..e, recitando a chorumela, apagaram-se na noite
tenebrosa.
Enquanto Friedman e Gudin se
desmancham, o coro financeiro, agora encorpado por notáveis da oposição, pelos
“especialistas” ouvidos todos os dias pela GloboNews e pela CBN, a cada meia
hora, por colunistas multiuso que nada entendem de tudo, o coro de novo
extasia-se, deleita-se, inebriado.
À medida que se produz a
esfumação, revelasse-me certa confusão, transparece-me que os fantasmas
inquietam-se e vejo, tenho a ilusão de ver, que uma nova assombração, toda
esbaforida, quer se incorporar ao cortejo, talvez querendo ser o filho nessa
trindade. Não deu tempo. Chegou atrasado. E vejo toda a frustração no rosto mal
delineado de Mailson da Nóbrega.
Nem bem se dissolve o coro dos
financistas, colunistas e avizinhados, vejo formando-se novo préstito cantante.
São editorialistas dos jornalões, apresentadores e comentaristas de televisão,
economistas e analistas do mercado, e os inefáveis oradores da oposição.
Esvoaçam, adejam sem qualquer
graça ou arte, desafinam na cantoria, um cantochão maçante, cujo estribilho
repete sem parar , como o corvo de Poe, “contabilidade criativa”, contabilidade
criativa”, “contabilidade criativa”.
O coro eleva o tom, vocifera
protestos, vergasta o lombo do ministro Mantega com adjetivos contundentes,
pontiagudos. Deploram o que chamam de fraude, desonestidade, falta de
transparência. Enquanto o pobre ministro e a própria presidente vêem-se na
roda, espetados por tanta indignação, eis que surge um estraga-prazeres para
espantar os fantasmas. É o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, ele faz voltas em
torno dos abantesmas com um cartaz, onde se lê: “Lembrem-se dos anos 90” .
Curioso pela advertência do
economista, acuro os ouvidos para entender o que ele diz. Mas o vozerio das
assombrações é muito forte, o tom elevado. A muito custo distingo parte do que
ele diz. E ele diz: “Não é novidade o uso de receitas não recorrentes para
engordar o superávit primário. Assim foi feito nos anos 1990, na “era das
privatizações”. Isso não impediu a escalada da dívida pública entre 1995 e
1999. Nesse período a dívida saltou de 29 por cento por cento do PIB para 44,5
por cento”.
Estarreço-me com a revelação.
“Contabilidade criativa” nos dois períodos do governo tucano? O PSDB também fez
isso? Não posso acreditar”.
Mas, sendo verdade, o editorial
do “Estadão”, afirmando que a presidente Dilma, ao fazê-lo, deu “mais uma prova
do firme compromisso com o atraso e o subdesenvolvimento” também se aplica ao
presidente Fernando Henrique Cardoso? Seria sua Excelência também vanguarda do
atraso e do subdesenvolvimento como os Mesquitas, ou seja lá quem hoje é o dono
do jornal, disseram?
Doem-me ainda nos ouvidos os
agudos da exasperação, da santa fúria do jornalão: “As bases de uma economia
saudável, promissora e atraente para empreendedores de longo prazo estão sendo
minadas por uma política voluntarista, imediatista, populista e irresponsável,
embalada num mal costurado discurso desenvolvimentista”.
Senti pena do couro dos senhores
Pedro Malan, Gustavo Franco e outros criativos condutores da política econômica
no governo FHC; com que marteladas foram agraciados pelos barões paulistanos.
O constrangimento provocado pelo
economista palmeirense, reavivando fatos tão recentes, opera como exorcismo,
pulverizando o cortejo fantasmático.
As assombrações, no entanto, não
se aquietam. Deixo a Polônia, despeço-me de Varsóvia que, tão coberta de neve,
parece-me ilusória, irreal, fictícia para quem acostumado aos trópicos. Na
Suécia não faz menos frio. Também Oslo envolve-se na neve.
As noites ermas, frias e escuras
são um convite à visitação das almas penadas.
E elas não se fazem de rogadas e
logo me assombram, espantam-me, assustam-me. Vejo ajuntamentos de pessoas,
desfiles. São imagens muito antigas. Os pelotões passam, os marchadores erguem
o braço direito, gritam uma saudação indígena; no alto das mangas de suas
camisas, um símbolo, uma letra, o sigma, a décima oitava letra do alfabeto
grego, também usada como símbolo matemático, representando somas ou variáveis
estatísticas.
Tenho a ilusão de que o sigma
desgruda das camisas verdes, gira em um caleidoscópio, e compõe como que uma
coroa de letras e transforma-se, agora, em símbolo da mais poderosa usina da
idéias conservadoras do Brasil, o think thank Instituto Millenium. A visagem
deságua em pesadelo quando o subconsciente trás à memória siglas como IPES, Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais, IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática,
GPMI, Grupo Permanente de Mobilização Industrial, usinas de idéias
antipopulares, antitrabalhistas, antissociais, antidemocráticas,
antibrasileiras, anti-humanas.
IPES, IBAD, GPMI, anauê, sigmas……
que pesadelo!
Na derradeira noite sueca, fria,
nebulosa, inóspita, os fantasmas se divertem em me pespegar outra pantomima. De
novo, um imenso cortejo espectral. Não me é muito difícil distinguir as
fisionomias dessas almas aflitas que flutuam entre os fantasmas dos terríveis
vikings e o espírito inquieto de Gunnar Myrdal, desolado com o afastamento de
suas idéias.
Furando as brumas polares, penso
ver plataformas de exploração de petróleo, espalhando-se mar adentro; tenho a ilusão
de navios, imensos petroleiros; desorientam-me, em seguida, nova dança de
símbolos, logotipos que se sobrepõem, dissolvem-se, anulam-se .
E das águas glaciais, das
geleiras tão áridas quanto o ardente Saara ilumina-se um dístico, heráldico:
Petrobrax.
À medida que a marca toma conta
do campo visual de meu pesadelo, ouço vozes, discursos indignados, e leio
manchetes de genuíno e antigo verde-amarelismo em defesa da estatal. E fico
confuso com essa troca de papéis entre os fantasmas da pátria tão distante.
Teria ocorrido alguma revolução?
alarmei-me.
Esses foram os últimos espectros
que me rondaram e me assombraram no velho continente. Aportado o Brasil, de
outra qualidade são os meus espantos.
Aterroriza-me não a contabilidade
criativa, e sim a ideologia do superávit primário.
Desassossega-me não o aumento da
inflação, e sim corrosão de nossa base industrial, sucateando-se ao céu aberto
da incúria governamental.
Alvoroça-me não o crescimento da
inadimplência, e sim a fragilidade de uma política econômica que se ancora no
consumo, no crédito consignado e na exportação de commodities.
Assusta-me não a expansão dos
gastos públicos, e sim a paralisia das obras de infra-estrutura; a execução
lentíssima, sonolenta do Orçamento da União.
De que têm medo os nossos
próceres ministeriais? Intimidam-nos a insepulta Delta ou o libérrimo
Cachoeira?
Apavora-me não o desacordo em
relação às metas, e sim, as próprias metas, camisa de força imposta pelo
mercado, pela financeirização da economia, que certa esquerda transforma
bandeira para ser vista como “responsável”, “moderna”.
Argh!!!
Estarrecem-me não as
privatizações, e sim o abuso, o desregramento das concessões, superando até
mesmo toda fobia privatista de Margareth Thatcher, como se vê agora no caso dos
portos.
Assombra-me não o picadinho
variado das medidas do Ministério da Fazenda, e sim a falta de uma Política
Econômica que se enquadrasse em um Programa para o Brasil, doutrinariamente à
esquerda, fundado na solidariedade, na distribuição da renda e dos benefícios
do avanço tecnológico, na prevalência, sempre, dos interesses populares e nacionais.
A oposição, a direita sabe o que
quer. Não se apoquenta com dúvidas, receios ou escrúpulos; quando muito,
disfarça o tom para não assustar, e açucara o óleo de rícino com que, no poder,
trata as crises e os interesses conflitantes.
São dessa ordem, são dessa
qualidade os meus espantos, os espectros que me assombram, assustam e
inquietam. E até quando viveremos nesse tormento, sem rumo, sem qualquer
garantia, sem nenhuma segurança?
E a única segurança é um Programa
para o Brasil.
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