Em decisão inédita, Justiça do
Paraná reconhece direito à moradia por usucapião em imóvel de massa falida
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| Por Terra de Direitos |
O Tribunal de Justiça do Paraná
publicou decisão inédita com relação à função social da propriedade urbana. Por
dois votos a um, os desembargadores do TJ confirmaram a sentença de procedência
do pedido de usucapião de cerca de 30 famílias de catadores de material
reciclável, que ocupam terreno de uma massa falida no bairro Boqueirão, em Curitiba,
desde 1999.
A decisão diz respeito à ação de
reintegração de posse proposta pela massa falida da empresa Tecnicom LTDA, em
2004, depois de avisada pela prefeitura sobre a ocupação da área. Desde o
decreto de falência da empresa, em 1997, o imóvel estava inutilizado, não
edificado e sem qualquer manutenção por parte da massa falida. A situação
caracterizou-se como descumprimento da função social da propriedade do terreno.
Com a decisão do TJ, o pedido de
reintegração de posse foi negado e o caso se torna o primeiro em que uma ação
de usucapião especial urbana coletiva é aceita para ocupação em imóvel de massa
falida. Para a assessora jurídica da Terra de Direitos que acompanha o caso,
Julia Ávila Franzoni, a decisão é de extrema importância para consagração das
disposições constitucionais sobre direito à moradia, direito à cidade e função
social da propriedade.
“O Poder Judiciário passa assim a
dar efetividade aos direitos humanos, através dos instrumentos jurídicos já
previstos em nosso ordenamento e pouco utilizados. Os instrumentos do Estatuto
da Cidade, como a usucapião especial urbana, pensados para garantia do justo
acesso à cidade, saem vitoriosos à compreensão da propriedade privada como
direito absoluto”. Na avaliação da assessora jurídica, a decisão é emblemática
e simbólica no que diz respeito ao direito à moradia, e por isso contribui para
luta dos movimentos sociais e das comunidades urbanas.
A usucapião urbana coletiva está
prevista no Estatuto das Cidades como instrumento para assegurar direito à
moradia de populações de baixa renda. Para a execução da usucapião, outros
direitos sociais também precisam ser garantidos às famílias, como saneamento
básico e acesso aos serviços públicos de infraestrutura urbana.
Além da Terra de Direitos, as
demandas jurídicas do caso tiveram apoio do escritório Fachin Advogados
Associados. Para Marcos Alberto Rocha Gonçalves, sócio do escritório, a decisão
judicial “representa resultado salutar de um processo emblemático, que verga o
anacronismo próprio de em um direito que carregava em si a poeira dos séculos
passados para dar à demanda social o sentido mais amplo da função social da
posse e da propriedade”.
Acesso à moradia e trabalho
Desde 1997, o terreno abandonado
pela empresa falida passou a servir de local de moradia e trabalho para
coletores de materiais recicláveis. Um barracão localizado no interior do lote
foi escolhido pelos moradores como espaço comum de separação e armazenamento
dos materiais. Ao longo dos anos, o grupo passou a se identificar como
“Sociedade Barracão”.
A partir do contato estabelecido
com a Terra de Direitos e a Assembleia Popular, em 2006, constituiu-se uma rede
de entidades e movimentos populares apoiadores da resistência da comunidade.
Neste período, a Terra de Direitos passou a fazer o acompanhamento jurídico do
caso, articulado ao trabalho social de apoio e incentivo à organização popular
e à geração de renda, a partir da assessoria para associativismo dos
trabalhadores da coleta de resíduos sólidos recicláveis.
Para a integrante da Assembleia
Popular, Vanda de Assis, a conquista dos trabalhadores do Boqueirão é um
aprendizado e prova que a luta e resistência tornam possível a conquista de
direitos. “Os sete anos de espera, desde a defesa da comunidade com a ação de
usucapião, foram de muita organização na comunidade. Hoje as famílias estão
organizadas, formaram associação e passaram a ser sujeitas de sua história”,
afirma Vanda.
O Centro de Formação Urbano Rural
Irmã Araújo – CEFURIA foi protagonista nesse processo, juntamente com o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento Nacional de
Catadores de Recicláveis, a entidade Moradia e Cidadania e o coletivo Despejo
Zero, entre outras entidades e movimentos.
Criminalizados pela prefeitura
Em dezembro de 2011, a prefeitura
municipal de Curitiba moveu uma Ação Civil Pública (ACP) contra os
trabalhadores da “Sociedade Barracão”. A ação pedia a apreensão do material
reciclável armazenado pelos catadores, principal fonte de renda dos moradores,
assim como o desmanche de parte das casas e a remoção das famílias. As
justificativas apresentadas pelo município foram de que o local se tornou foco
de doenças e oferece risco de incêndio e de enchentes.
No final de 2012, cerca de 50
policiais militares e guardas municipais realizaram a retirada dos materiais
recicláveis próximos à moradia das famílias. Segundo os moradores, a ação foi
truculenta, inclusive com ameaças de que as casa também poderiam ser
destruídas, caso houvesse resistência dos trabalhadores.
A ação violenta da polícia e da
prefeitura contrariou as negociações feitas com os trabalhadores da reciclagem
à época. Em reunião com a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, houve a
deliberação de que a prefeitura viabilizaria o custeio de um barracão com
espaço adequado para o trabalho de reciclagem para as famílias. Na ocasião, os
trabalhadores ficaram responsáveis por encontrar o local, e mesmo com a
identificação de um barracão adequado na região, a prefeitura ordenou o despejo
dos materiais.
A partir de 2013, as famílias e
as entidades apoiadas abriram diálogo positivo com a nova gestão da prefeitura
de Curitiba, por meio da Região do Boqueirão. Até agora, a postura da gestão
atual tem sido de cooperação com o caso.

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