Por Pablo Iglesias, secretário-geral do Podemos | via Outras Palavras
Uma pesquisa eleitoral surpreendente sacudiu o panorama
político da Espanha, na última sexta-feira. Segundo o jornal “El País”,
candidatos apoiados pelo movimento-partido Podemos podem ganhar, nas eleições
municipais do próximo domingo, as prefeituras das duas principais cidades do
país. Em Barcelona, Ada Colau, líder do movimento contra o despejo dos
moradores impossibilitados de pagar prestações de suas casas, lidera a disputa.
Na capital, Madri, outra mulher, a jurista Manuela Carmena, conhecida por longa
atuação em favor dos presos políticos do franquismo e das causas trabalhistas,
está em segundo lugar, em forte arrancada.
As tendências ainda podem ser revertidas. Há, segundo as
mesmas sondagens, entre 30% e 45% de indecisos. Mas alguns fenômenos
destacam-se. O primeiro é a aparente consolidação do Podemos. Depois de
despontar meteoricamente no cenário político, em janeiro de 2014, o movimento
sofreu ataque intenso da mídia. Nos últimos meses, seus líderes foram
“acusados” incessantemente de chavismo, populismo e… anarquismo. Se os ataques
não “colaram”, é porque uma importante parcela da opinião pública tornou-se
pouco suscetível à propaganda dos jornais e TV.
O segundo é a própria estratégia do Podemos. Nem Ada Colau, nem Manuela Carmena
são integrantes do movimento. Este optou por concentrar suas energias no que
chama de “combate à ‘casta política’” que sequestrou a democracia espanhola.
Mira, principalmente, as eleições gerais do fim do ano. Nelas, vê a
possibilidade de impor uma derrota devastadora contra os dois partidos que
dominam o atual sistema (PP e PSOE), a ponto de tornar inevitável uma grande
reforma. Articular alianças é parte deste processo. Por isso, o Podemos
preferiu não disputar em Madri e Barcelona, oferecendo apoio a candidaturas
que, embora não o fortaleçam enquanto organização, ajudam a construir seu
principal objetivo político.
Por fim, há o contexto espanhol e europeu. Em nenhuma outra
parte do mundo a crise financeira produziu resultados tão regressivos. Para
salvar os bancos, o Estado de bem-estar social está sendo sistematicamente
destruído — em especial em países como Grécia, Espanha, Portugal e Irlanda.
Esta política é apresentada como a única possível. Tenta-se isolar e humilhar
as nações que reagem a ela — como a Grécia, após a vitória eleitoral do Syriza.
A possível emergência, nos próximos meses, de mais um país
rebelde, poder significar que esta tentativa de impor uma política e um
pensamento únicos enfrentam resistências. Talvez por isso, Iglesias anime-se a
ressaltar: não se trata de mudanças de nomes, ou apenas cosméticas: chegou a
hora de uma ruptura. Fique com seu texto, possível antídoto também para um
cenário brasileiro que parece descambar, a cada dia, para o igualamento de
projetos e o esvaziamento da democracia (A.M.)
—
Nos parágrafos mais legendários de seus Cadernos do Cárcere, Antonio Gramcsci
refletia sobre as estratégias clássicas da I Guerra Mundial — posição e manobra
— para entender a política no ocidente. Na política ocidental, a guerra de
manobra (o assalto) perderia a relevância ante uma complexa guerra de posições,
na qual o Estado já não seria mais que a trincheira avançada do conjunto de
fortificações da sociedade civil. A política da guerra de trincheiras é a luta
pela hegemonia. Diferentes do que pensam muitos, Gramsci não criou o conceito
de “hegemonia”, que já estava presente nas reflexões de socialistas russos que
Gramsci conheceu, inclusive em alguns textos da Terceira Internacional. Mas
Gramsci foi o primeiro a entender a hegemonia, não como a necessidade das
organizações socialistas liderarem setores subalternos diferentes da classe
operária ou de se aliarem a setores da burguesia, mas, isso sim, como o
conjunto de mecanismos culturais sobre os quais repousa a ordem política nas
sociedades avançadas. Gramsci voltou a Maquiavel, pai da política como ciência
do poder, para entender a importância do consentimento. É que o poder, nas
sociedades avançadas, não se manifesta só mediante mecanismos coercitivos, mas
– e predominantemente – mediante o consentimento e o consenso.
A explicação de por que as reflexões de Gramsci resistiram
tão bem ao tempo, convertendo-se em referência para todas as esquerdas, e
inclusive para algumas direitas letradas, é que a política ocidental, depois
que se consolidaram os sistemas democráticos e seus Estados, é, basicamente, a
política de hegemonia. Os setores dominantes “têm a hegemonia”, quando têm a
capacidade orgânica [têm os meios orgânicos indispensáveis] para convencer as
maiorias da sociedade da veracidade das narrativas que justificam e explicam a
ordem política vigente.
Os dispositivos de convencimento são basicamente culturais
(a escola e a Igreja são os exemplos clássicos; os meios de comunicação são o
exemplo do nosso tempo) e servem para implantar as chaves para a interpretação
das narrativas ditas “hegemônicos”. Obter a vitória na política “de hegemonia”
é, basicamente, ser capaz de convencer os demais da veracidade do próprio
relato.
Nos períodos de estabilidade política (geralmente associados
à estabilidade econômica), a narrativa hegemônica é quase inexpugnável. Mas
quando se produzem crises orgânicas, abre-se a oportunidade de (i) questionar
mediante a guerra de trincheiras, ou de manobra, todos os relatos dominantes;
e, por isso, de que (ii) se produzam mudanças políticas. O movimento 15M mostrou
que há uma crise orgânica na Espanha, questionando os relatos políticos
oficiais e convertendo-se na melhor expressão social da crise.
O Podemos tem sido, até agora, a melhor expressão política
dessa crise, conseguindo impor novas interpretações da situação e novas
possibilidades de transformação, mediante o protagonismo dos setores
subalternos (o povo). A introdução, no idioma político espanhol, da palavra
“casta”, para designar as elites políticas e econômicas, é bom exemplo da
política do Podemos; a política em favor de uma nova narrativa da crise e da
forma de superá-la. A luta por ocupar o centro do tabuleiro é, precisamente, a
luta pela capacidade para determinar onde, exatamente, está o centro do
tabuleiro. Como dissemos em artigo anterior, se conseguirmos situar o centro na
necessidade de democratizar a economia, o Podemos vencer. Ao contrário, se o
centro for situado em outros parâmetros (a mera regeneração ou nova troca das
elites, dentro das próprias elites), os setores dominantes terão mostrado sua
capacidade de resistência.
Nos momentos de crise orgânica, as campanhas eleitorais são
uma guerra de trincheiras simplificada. As campanhas representam o momento ou
da glória ou do fracasso dos estrategistas políticos que se engalfinham para
conseguir impor o próprio relato sobre a base de consensos mutáveis e mutantes,
no dificílimo entorno dos meios de comunicação, que são, eles também,
operadores políticos não neutros.
A campanha que começa agora é guerra de trincheiras pela
construção de um relato político. De prevalecer um ou outro, dependerão, em boa
medida, os resultados finais, dado que quase a metade dos eleitores ainda não
decidiu em quem votar. Que devemos fazer? A primeira tarefa, antes de se pôr a
perseguir o adversário, é observar seus movimentos. Que narrativa eles estão
tentando impor? Dirão que o Podemos está-se esvaindo nas pesquisas; que
basicamente há quatro forças aspirantes ao [Palácio de] Moncloa; que o centro
fundamental da disputa são os pactos pós-eleitorais num cenário instável de
muitos partidos; que a Espanha é país de classes médias e que as maiorias
sociais são moderadas. Basta examinar o passado recente, para comprovar que o
êxito político e social do regime de 1978 dependia de uma narrativa muito
parecida a essa, que se traduziu no estrepitoso fracasso do possibilismo
eurocomunista e na moderação de um Partido Socialista que, ao chegar o comando
do Estado, poderia ter ido muito mais longe.
Hoje, a narrativa dos nossos adversários dirá que Podemos
foi protagonista da ruptura, mas que não será protagonista da mudança. Alguns
cartunistas captaram este discurso, com a lucidez própria dos caçadores e
inventores de narrativas.
O que, então, temos de dizer nessa campanha? Em primeiro
lugar, que o Podemos nasceu para ganhar as eleições gerais e que nenhuma
batalha prévia, por importante que seja, vai-nos distrair da batalha principal.
Temos de dizer que não haverá mudança sem ruptura e que, portanto, quem se
aliar a nós terá de romper com as políticas que nos levaram ao desastre. Nessas
eleições não há quatro opções, há duas: ou mudar, ou continuar com o de sempre.
O Podemos não está só, no projeto de mudança; na cidade de Madrid, a mudança
chama-se Manuela Carmena; em Barcelona, Ada Colau. E nossa mão está estendida
para todos que sejam pela mudança, que significa defender o que é público e os
direitos sociais.
Por isso, o Podemos defende a unidade popular e é
instrumento para a unidade popular. É preciso dizer que hoje 13 milhões de
espanhóis estão ameaçados pela miséria; que 1/3 dos assalariados recebem apenas
645 euros/mês [R$ 2,2 mil]; que quase a metade dos desempregados não recebe
nenhum tipo de serviço público. As maiorias sociais não aspiram a uma segunda
moradia, nem a três carros na garagem. Só aspiram a escolas públicas e a
hospitais públicos; a moradia digna; a não atarem a própria vida a uma hipoteca
infindável; e a um salário decente. Na Espanha não há maioria social moderada,
há um povo que se recusa a humilhar-se e tem bem claro quem são seus inimigos:
as elites políticas e econômicas que assaltam o povo espanhol e enriqueceram à
custa dele. Temos de explicar que nosso programa é o programa da mudança,
precisamente porque se centra em resgatar os cidadãos, em transformar o modelo
de produção, em favorecer o emprego de boa qualidade e com direitos, em
promover a inovação tecnológica e em criar instituições que protejam a
democracia contra a corrupção e o assalto à propriedade pública.
A guerra de trincheiras está começando. O adversário deseja
que nos deixemos guiar pelos movimentos dele. Temos de forçá-lo a seguir os
nossos movimentos, fazendo o que melhor sabemos fazer: dizer as verdades que
outros não têm coragem para dizer, dizê-las sem meias palavras, por incômodas
que sejam para as elites.Nada temos a ganhar com nos fazer parecidos com o
inimigo. Só temos a ganhar nos parecendo cada vez mais conosco mesmos.
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