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| Paul Jay |
"A bomba atômica é o mito fundante da sociedade norte-americana. A bomba nos deu o direito de fazer o que quiséssemos. E assim fomos, até aqui, onde inventamos nossa própria moral, enquanto avançávamos. Nunca pedimos desculpas!
O documentário em dez episódios,
A História Não Contada dos EUA [The Untold History of the United States]
desmonta grande parte da narrativa convencional da história dos EUA pós-Guerra
Fria. Organizamos uma série em vários episódios, com Peter Kuznick, coautor do
documentário, com Oliver Stone.
Oliver Stone, como muitos de
vocês sabem, é um dos mais celebrados cineastas norte-americanos. Tem três Óscars,
como diretor e roteirista. É veterano da Guerra do Vietnam. Fez quase duas
dúzias de filmes aclamados, entre os quais Platoon, Nascido em 4 de julho, JFK,
Nixon, W., e Wall Street e Wall Street 2.
Agora, Oliver Stone, com Peter
Kuznick, produziu esse seriado em dez episódios, que está no ar no canal
Showtime, The Untold History of the United States [A História Não Contada dos
EUA]. Hoje, conversamos no estúdio com Oliver.
Obrigado por nos receber.
OLIVER STONE: Obrigado, Paul."
JAY: Então, antes de tudo,
parabéns. Vocês enfrentaram alguns dos assuntos tabu, da história dos EUA. Não
preciso repetir, porque já discuti com Peter. Ainda estou surpreso, de certa
maneira, por o documentário estar sendo exibido no canal Showtime[2].
Mas comecemos pelo fim do seriado.
E o último episódio trata do final do governo Bush e início do governo Obama. E
o presidente Obama, quando candidato em 2008, quando alguém lhe perguntou sobre
as raízes de seu projeto de política externa, respondeu que começavam com
Truman e terminavam com Reagan. Essa, me parece, é a tese de fundo, do seu
filme. Todo o arco da série é uma demonstração de que a política do presidente
Obama é um continuum. Que continua aquela política externa dos EUA. Fale um
pouco dessas raízes e de porque você entende que Obama segue um continuum.
STONE: É isso mesmo. Você conhece
a palavra teleológico? Sabe o que significa?[3]
JAY: Sei.
STONE: Foi a palavra que me
ocorreu, quando você falava sobre isso. E pensei: o único modo de pensar sobre
o filme é do fim para o começo. É preciso conhecer o fim da história, para
desemaranhar o início. E sempre foi essa a minha ideia.
JAY: Pensei nisso, porque é assim
que se deveria ensinar história. Observar o que acontece hoje e partir, do
presente, para o passado.
STONE: [fala cruzada] ... e andar
para trás. É. O que vivemos hoje é o que conhecemos... mas não vemos o passado.
É o que chamo de “tirania do agora”. Somos soterrados por detalhes e eventos
diários, e somos arrastados nesse vento.
Aí está a beleza de poder parar e
fazer isso que fizemos, Peter e eu. É um projeto imenso que começa nos anos
1940s. De fato, começa em 1900, e estão em produção dois capítulos extras, o
prólogo. Os capítulos A e B serão lançados em DVD em setembro-outubro, pela
Warner Brothers, uma caixa, com 12 horas de filme. Mas o que você disse sobre
Obama, sim, é o meu pensamento.
JAY: E anda para trás até
McKinley, não é?
STONE: É. Até McKinley e Bryan na
eleição de 1900, e daí prossegue, até as duas guerras.
A Primeira Guerra Mundial é
imensa. É a mãe de todas as guerras. É a mãe da Segunda Guerra Mundial.
Mas, sabe... Eu me fiz a mesma
pergunta. Quando decidi iniciar esse projeto, em 2008. Estava, então, com 62
anos. E pensei: estou chegando ao fim de minha pequena passagem por aqui. E
quero saber: Que negócio foi esse, Oliver? Sabe, qual o sentido disso tudo? O
que significou? O que ficou escondido. Porque a coisa toda começou, para mim,
na semana em que Wallace, Henry Wallace, foi demitido. Nasci naquela semana.
Uma espécie de ironia. Na semana daquela coisa toda [o discurso de Wallace e
sua demissão] no Madison Square Garden.[4]
Nasci em New York, meus pais eram
norte-americanos típicos daquela geração otimista da 2ª Guerra Mundial. Meu pai
era militar. E o mundo era tão grande, tão luminoso, e New York era o centro
daquele mundo. E eu estava ali. Ironicamente, acabei indo para o Vietnã. E
minha vida, você sabe, parte dela, o cinema, os filmes... Acho que tentei
escapar outra vez para o mundo da fantasia.
Mas fato é que toda a minha
geração, meus colegas na Universidade de Yale, a Hill School, quase todos eles
tornaram-se os principais agentes do poder do meu tempo: Bill Clinton. George
Bush foi meu colega de turma, em Yale, turma de 68. E era típico daquela
geração de títulos e privilégios, que assumiam que os EUA eram o centro do
mundo e nós tínhamos o direito de fazer o que quiséssemos.
JAY: Uma geração e uma classe.
STONE: É. E aquele direito nos
fora dado pela bomba. E, hoje, já ninguém sabe disso. É o que mais me assusta.
Quero dizer, todos sabemos, mas é como se não soubéssemos. Não reconhecemos. E
muito me incomoda. Acho que... porque sou dramaturgo, parte do que faço é
entrar pelo subconsciente da geração, o subconsciente da raça, e tento trazer à
tona coisas primais, coisas sobre as quais não se fala nas festas, nos
coquetéis.
Sempre senti, no meu coração, que
tudo mudou, nos EUA, com a bomba atômica. A bomba nos deu o direito de fazer o
que quiséssemos. E, porque a bomba tinha poder, nós tínhamos o poder ao nosso
lado. E se tínhamos a força, tínhamos o direito. Para nós, tudo se misturou: a
força com o direito; a força e a habilidade de fazer o bem. Como se fazer o bem
fosse consequência automática de ter a força. E assim fomos, até aqui, onde
inventamos nossa própria moral, enquanto avançávamos. Nunca pedimos desculpas!
Nunca sequer consideramos a possibilidade de pedir desculpas por ter lançado a
bomba atômica sobre o Japão. Nunca nos ocorreu que fosse necessário, porque
sempre pensamos que era necessário para pôr fim à guerra.
E a saga da minha vida começa com
o clímax da 2ª Guerra Mundial. E vencemos com a bomba atômica. O Japão foi
destruído. Não há mito maior que esse. É falso. Acho que conseguimos elaborar
essa história com detalhes. A bomba é o mito fundante da sociedade
norte-americana. Estou tentando dar conta de sua pergunta sobre Obama, porque
estou indo ao fundo, para chegar ao fim, hoje.
JAY: É, porque também aconteceu
por ação do Partido Democrata. O partido Democrata estava no poder. Foram os
Democratas que construíram e lançaram a bomba atômica.
STONE: É. Sim. O Partido
Democrata, com poucas exceções, formou um dueto com o Partido Republicano. 1946
foi um ano chave. Ano da primeira eleição pós-guerra. As eleições parlamentares
de 1946, trouxeram os Republicanos fumegando, de volta a Washington. Havia
muita gente muito furiosa, com tudo aquilo, contra Roosevelt.
E Roosevelt adivinhou. Acho que
aí está uma provável razão pela qual se separou de Wallace, ou virou-se contra ele. Acho que
farejou um retorno dos conservadores, já de volta desde 44. Todos os chefões
partidários e os Democratas fizeram campanha para livrar-se de Wallace e
substituí-lo por Harry Truman.
Mas os Republicanos, de fato,
todo o país, também tinham medo, depois da guerra. Todos temiam uma recaída
numa depressão. O medo foi espantado pela ‘nossa força’, a bomba, a arma
nuclear – podíamos ameaçar quem quiséssemos. Lançamos a bomba contra o Japão.
Mas sentimos – como disse Edward R. Murrow sentíamos medo. Havia medo no ar,
e ninguém conseguia localizá-lo, explicá-lo. Os russos demoraram ainda três
anos para ter a bomba. Mesmo assim, estávamos com medo. E os Republicanos
aproveitaram-se desse medo nas eleições. Assim, Truman estava, em certo
sentido, também reagindo ao medo.
O medo sempre foi predominante na
minha vida – medo da bomba, medo de crescer, medo de ser atacado pelos russos.
Estava lá. Meu pai costumava falar da conspiração mundial dos russos, que
tentariam tomar o poder mundial. Para mim, era verdade bíblica, como Deus.
Quero dizer, ele acreditava nisso, que os russos eram o inimigo. A China era
também aliada deles e a Guerra da Coreia inflou esses medos. E quando fui para
o Vietnã, sabe, eu era um indivíduo com muito medo, como muitos
norte-americanos.
E olha-se então para o que temos
hoje, com o Sr. Obama, e é triste, porque não aprendemos. Por isso nós
escrevemos esse livro e fizemos o
documentário seriado. Na esperança de que as pessoas digam, aquela história é
mito que nos foi impingido. A história real é essa. Eis o que os EUA fizeram
nesses anos. E se fôssemos capazes de encarar a verdade, firme e honestamente,
como tanta gente derrotada em guerra encara suas verdades – os alemães, os
cidadãos alemães, encararam suas verdades alemãs; os japoneses encararam as
verdades japonesas. Precisamos, francamente... Precisamos ainda de uma enorme
derrota, da qual aprender. Nunca fomos derrotados.
JAY: E quando você exibe o
documentário e fala com pessoas que votaram no presidente Obama, e em Hollywood
ainda há muita gente ainda muito entusiasmada com o presidente Obama, e toda
aquela mentalidade, essa gente, encarando a verdade da própria história. Parece
que não conseguem....
...
JAY: Quando você falou com gente
em Hollywood, que continua entusiasmada com o presidente Obama, gente que
racionaliza esses ataques com os drones, que consegue racionalizar essas leis
NDAA que... você sabe, permite que os militares mantenham pessoas presas por tempo
indefinido... Eles encontram meios para racionalizar e continuam a repetir que
estão certos, que são os ‘mocinhos’, que ainda vivemos em democracia, que ainda
defendemos a democracia, que somos os civilizadores, os senhores da moral.
STONE: Está tudo fora de lugar.
Tudo. Tudo de cabeça para baixo. E teleologicamente de pés para cima. E como
olhar por um telescópio. Mas não se vê a própria imagem. É como se a imagem
estivesse ‘flipada’, como se faz no cinema. Pode-se inverter tudo, pegar a
história, chacoalhar e mostrá-la ao contrário, exibi-la de cabeça para baixo e
pés para cima, ao contrário do esperado, para ver melhor. Pegue um aluno de
história, faça-o ver os fatos, faça-o debater, debate real, sobre tudo isso, e
tome cada um desses eventos, da bomba atômica até hoje – e é obrigatório
começar pela bomba atômica, que mudou tudo. Pode-se começar pelo próprio
conceito da 2ª Guerra Mundial e o papel dos EUA na 2ª Guerra Mundial.
E se se puder ter esse debate com
um aluno, pelo menos há chance de sermos mais humildes, e há chance de entender
que nem todos nós somos o mal, mas que com certeza não somos todos bons, não
fomos tocados pela divindade e que Deus não está do nosso lado.
JAY: Bem, você estava dizendo que
cresceu acreditando em muito dessa mitologia. Quando foi que a ficha caiu, para
você?
STONE: Cresci, mesmo. Por isso
acho que posso... A ficha, no meu caso, caiu aos 40 anos. As pessoas dizem que
fui para o Vietnã e voltei radical. Nada disso. Fiz um filme sobre um homem ao
qual isso aconteceu, Ron Kovic [Nascido em 4 de julho, 1989],[5] que é um
sujeito maravilhoso. Voltou numa cadeira de rodas e furioso, e entendo por quê.
Eu era mais bobo, mais apático, digamos apático. Ou entre uma coisa e outra.
Demorou vários anos, depois de voltar, para... Fiquei em cima do muro. Com
certeza não me sentia bem com o Vietnã. Mas falando com outras pessoas, me
autoeducando. Nasci numa família profundamente conservadora, compreenda...
Republicanos. Eisenhower, Castro é o demônio, Kennedy era o demônio, Roosevelt
sempre foi o arquidemônio.
JAY: Esse era o seu sistema de
crenças.
STONE: Era o meu contexto. Lá
pelos anos 1970, com as audiências sobre Watergate e a Comissão Church, comecei
a ter brigas terríveis com o meu pai sobre essa coisa toda. Ele sempre chamou o
Vietnã de “ação policial”. Feria meus sentimentos, porque participei de combate
ativo, muitas vezes, e ele me feria quando dizia “pare com isso, o Vietnã não
foi como a 2ª Guerra Mundial, não passou de ação policial”, como se quisesse
esconder um erro debaixo do tapete, como a Coreia estava metida sob o tapete.
Mas, não, comigo, não. Não foi
“ação policial”. Foi guerra enorme – e hoje sabemos, pelas baixas e pela
quantidade de vietnamitas mortos, que foi guerra massiva, massiva, e suja,
muito, muito suja.
Mesmo assim, só à altura dos anos
1980 – sou lento mesmo. Mas você tem de me acompanhar. Estou em cima do muro.
Acredito na Comissão Church. Estou horrorizado, ao saber o que a CIA faz, os
golpes.
Lá pelos anos 1980, Reagan foi
eleito. Ainda apoiei Reagan, acredite ou não, porque Carter, para mim – ainda
acreditava na imprensa, acreditava que Carter tinha feito um estrago e
acreditava que Reagan podia acertar as coisas. Então, em 1984, fui para a
América Central, com Richard Boyle, para fazer Salvador [1986][6]. E, de
repente, tive essa espécie de flashbacks, porque via soldados norte-americanos
nas ruas de Tegucigalpa, em Honduras, homens e mulheres uniformizados,
parecidos comigo no Vietnã... e contam a mesma história sobre o que fazem ali,
aquela história, você sabe – os comunistas estão ali, ao lado, na Nicarágua, e
vão invadir... – Basicamente, Reagan estava ali, dizendo que os comunistas vão
atravessar a fronteira e... os russos os apoiam, os cubanos os apoiam, armas,
suprimentos. E então, ali eu já sabia que aquilo tudo era mentira, merda. Fui a
Salvador, a Honduras, à Guatemala, que é um pesadelo de esquadrões da morte, e
Reagan... De repente, vi Reagan de outro modo, sob outra luz. Voltei aos EUA.
Fiz Salvador – não sei se você assistiu, mas...
JAY: Sim, assisti.
STONE: ... é filme progresssista,
com visão progressista de Salvador.
JAY: Sem dúvida, é. Ia dizer que
ninguém jamais suporia que aquele cineasta tenha saído de tantas ideias da
Guerra Fria.
STONE: É, saiu. Saiu do abuso
contra os camponeses, as classes empobrecidas. E tudo isso estava lá, também,
no Vietnã. Vietnã e América Central, para mim, era a mesma coisa. E sofri por
aquele povo. E fiz o filme.
E daí em diante, já aos 40 anos –
bem tarde, na minha vida. Comecei a reexaminar realmente essa coisa toda e
lentamente. Porque cada um daqueles filmes – JFK, Nixon, os filmes do Vietnã –
levou-me para diferentes locais de pesquisa. E em Washington tinha pesquisa de
frente – sobre Nixon, aquela coisa toda, JFK.
Fiquei chocado com o que vi para
fazer JFK, porque estávamos tentando lidar honestamente com transparência, num
governo transparente. Chocou-me muito que o movimento conservador nos EUA tenha
atacado tanto o filme. Porque eu acreditava que os conservadores se alinhariam
conosco. Goldwater dizia, transparência, façamos as coisas com transparência,
vamos descobrir o que realmente aconteceu. Mas ninguém queria descobrir coisa
alguma. Assim, a imprensa, de repente, pôs-se mais violentamente contra mim,
mais que nunca, porque me atacavam de todos os lados, no caso desse filme, JFK,
dizendo que eu falsificara a história.
E assim fui andando. E em 2008,
quando fiz W., que foi minha tentativa para falar da presidência de George Bush
com esse viés de humor, porque era tudo tão ofensivo – uma sátira, digamos
assim –, que era o que nós víamos.
Agora decidi que tenho de ir além
e, pelos meus filhos, fazer uma coisa maior, mais definitiva, e tentar lidar
com a coisa toda, tudo que vi desde os anos 1940s até agora. E a história de
Peter Kuznick, com Henry Wallace sendo despachado para fora da cena, em 44,
amarra-se muito ironicamente com a bomba atômica. Assim sendo, se você quer
falar sobre bomba atômica, achamos que esse poderia ser a porta de entrada –
voltar até Wallace nos levou logo à história da bomba, à candidatura Truman. E
assim chegamos à Guerra Fria.
JAY: OK, obrigado. Esse encontro
continuará.
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