O PIMESP é a ponta de um iceberg. O que está por baixo é a matriz do pensamento social brasileiro, baseado na teoria racial e no “darwinismo social”.
Adriana Rodrigues Novais* e
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No século XIX, as ciências sociais no Brasil
tinham como marco teórico a teoria racial, a teoria climática e o “darwinismo
social”. Era o relato dominante entre os intelectuais da América Latina a
propósito do povo. Aquele foi um período de constituição de Estados de costas
para a Nação e que tomavam a Europa como referência de civilização. O
território era, para esses intelectuais, a sede da barbárie.
No Brasil, autores como Sílvio Romero, Nina
Rodrigues e Euclides da Cunha viam no “branqueamento” um caminho para o Brasil
em direção à civilização. Com a exceção notória de Manoel Bonfim, médico
sergipano, que via na condição colonial a origem do atraso relativo dos países
latino-americanos, a elite intelectual brasileira atribuía todos os males à
composição racial negra, indígena ou mestiça do seu povo.
Nina Rodrigues, mesmo sendo um abolicionista
declarado, chegou a “provar” que a desvantagem intelectual dos negros tinha
bases na sua constituição biológica. Observou que a soldadura dos ossos
cranianos dos bebês negros, assim como os brancos que depois apresentavam
atraso mental, era precoce, impedindo assim o desenvolvimento do cérebro.
Nina Rodrigues fez uma experiência,
registrada no seu livro “Africanos no Brasil”, na qual tentou retardar o
fechamento do crânio de bebês negros por meios mecânicos, mas “comprovou” que a
soldadura precoce era apenas um sintoma, e não a causa do reduzido desenvolvimento
cerebral em tais indivíduos. O positivismo de Auguste Comte, o darwinismo
social e o evolucionismo de Spencer dominaram o pensamento no berço das
ciências sociais brasileiras.
Muita água correu embaixo da ponte. A
sociologia crítica combateu tais teorias. Décadas mais tarde, As obras de
Florestan Fernandes e Octávio Ianni, de Milton Santos e de muitos outros
fundamentaram suas acusações de tais teorias como racistas e anticientíficas.
Mas essa matriz primeira permeou o senso comum e permanece enraizada, ainda que
nem sempre manifesta, na academia.
O darwinismo social, segundo o qual são os
mais aptos e talentosos os que “se estabelecem”, se parece muito com a
meritocracia do senso comum. De nada serve estudar autores como Pierre
Bourdieu, que explica a difícil adaptação à vida escolar e universitária dos
filhos de famílias não escolarizadas por conceitos como “capital cultural” e
“habitus”, quando uma crença que impregna o pensamento dominante se impõe:
pobre é pobre por merecimento.
E as universidades paulistas não negam sua
origem. Cabe lembrar que Júlio Mesquita Filho, patrono da Unesp, escreveu, a
propósito da USP, que a universidade é o cérebro do organismo social
brasileiro, acrescentando depois: “Nós temos que cuidar muito do organismo
político brasileiro, e não podemos dar direito de voto a determinadas regiões,
porque o organismo brasileiro é meio teratológico, cresceu de um lado e não se
desenvolveu de outro [...] Ocorreu na sociedade brasileira um problema
seríssimo, foi incorporada à cidadania a massa impura e formidável de 2 milhões
de negros, que fizeram baixar o nível da nacionalidade, na mesma proporção da
mescla operada”.
O PIMESP, “Programa de Inclusão com Mérito
no Ensino Superior Público Paulista”, carrega, no seu DNA, como gostaria Nina
Rodrigues e no próprio nome, essa perspectiva teórica, substrato do pensamento
acadêmico conservador brasileiro. É a proposta do Conselho de Reitores das
Universidades Estaduais Paulistas para implementar a política federal de cotas
à maneira “paulista”.
O programa tem como meta que pelo menos 50%
das matrículas de cada curso e de cada turno provenham de escolas públicas e
que 35% seja de pretos, pardos e indígenas, isto é, que o alunado da
universidade tenha uma composição semelhante à da sociedade brasileira, segundo
o censo do IBGE de 2010. O que o programa prevê é uma inclusão progressiva, com
inclusão de 40% dos beneficiários das cotas em cursos sequenciais de dois anos,
de caráter profissionalizante e de duração e ofertados à distância. Concluído o
curso de dois anos, o aluno poderá ingressar a uma universidade ou faculdade
pública estadual.
Não há qualquer explicação a propósito da
relação causal entre esse procedimento e as metas. Aliás, parece que o
procedimento responde a outras metas, não mencionadas: a criação de cursos
pobres para estudantes pobres, e criar empecilhos para que tais estudantes
tenham acesso aos cursos que lhes interessam, adiando o seu ingresso.
Por que esses dois anos os aproximariam ao
curso desejado? Os cursos sequenciais seriam, por acaso, uma oportunidade de
“nivelamento”? De que maneira um curso à distância favoreceria esse
“nivelamento”? Isso não é dito. Por que os estudantes pobres têm que “fazer
mérito” e os ricos não? O Conselho de Reitores das Universidades de São Paulo
não suporta nem a tímida política de democratização do ensino superior do
governo federal. Êh, São Paulo da garoa e da elite racista.
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* Professora da rede pública estadual de
ensino médio e Mestranda em Sociologia pela UFSCAR;
** Professor-assistente da Função de Ensino
Superior de Passos; doutorando em Ciências Sociais pela UNESP, campus de
Araraquara.
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